Nã sê se mecêas sabem, mái, este D'mingo, é dia da Festa da Mãe Soberana de Lôlé. A famila aqui dos nossos lados tem c'stume de , tôd's anos, fazer uma excursão p'a ir a essa festa que, há quem diga, qu' é a mái antiga lá do baxo do Algarve. Des que tem p'ra cimba de quatr'centos anos ò mémo até um mê milhêro deles e ajunta-se lá pessoal de tôd' ô lado. Só aqui de Monchique, muntas vezes, chegam-se a enchêr duas caminetas, calculem...
Inda agora, passí ali à Fonte dos Ch'rõs, e vê-me à idéa uma passaja que se deu, há uns belos anos, méme naquele sito. Uma enganifa. Ê cá nã tive lá, senã no fim, qu' ê, esse ano, nã fui qu' a minha Maria, qu' inda era nova, embirrô que nã havera d' ir lá, p'r ca'sa dumas coisas dela, e atã nã se foi. Más o mê compad'e Jôquim, esse foi. Foi... Foi até à Vila. Ele até nem aprecêa nada que se l'e fale nisto. E mecêas já vâ ver ó perquém.
Pôs o caso foi este:
Andaram p' aí uns à cata de famila p'a ir na excursão. Na Vila, em Marmelete, béque-me no Alferce tamém, aí p'r tôd' ô lado, e iam logo fazendo o jêtinho d' arreceber o d'nhêrinho dos pobrezinhos. O mê compad'e Jôquim, qu' é de munto boas contas e gosta d' amostrar que tem p' além um d'nhêreco, q'ondo tem, puxô logo da cartêralha e prèguntô q'ont' é que tinha a pagar.
Nôt's lados, eles tinham só pedido à metade, mái q'ondo viram qu' o mê compad'e tinha a cartêra chêazinha de notas, d'zeram-l'e que s' ele pagasse logo tudo, inda l'e tiravam uns dez mem rés do preço que já l'e tinham dito.
O homem, que nã é má pessoa, mái por um destão nã sê o qu' ele é capaz de fazer, contô munto bem, p'r duas vezes, a conta que l'e pediram, dé-l'o, e combinaram que, despôs, era só irem lá, no D'mingo da Mãe S'brana, panhar a camineta ô pé da venda do Entradas.
No dia da festa, logo de manhãzinha bem cedo, p'a melhor d'zer, inda era bem de nôte, c'mecí a ôvir umas vozes além p' ô lado do monte deles, vi logo que se tratava da abalada. Já há um belo pôco qu' ê tamém nã d'rmia, pensí:
- Dêxa-me lá alevantar, vô-m' ali p'r trás de casa ôlhar ôs bichos e semp'e dô p'r eles abalarem. A minha Maria, que 'tava a caçar ratos voltada p' ô ôt' lado da cama, dé logo remôr:
- Atã, já te 'tás a alevantar?
- 'Tô aqui mal na cama, vô-me adiantar o servicinho qu' ê hoje quero ir mái cedo p' à Vila p'a ver se 'tô lá com o ti Alberto do Correpito qu' ele f'cô de m' arrenjar umas batatas de semente, dumas sigundêras qu' ele tem p' a lá, e ê tenho preciso delas a toda a hora.
- Nã ôves, atã hoje nã é a Mãe Sob'rana?... Por isso, ê, já há um belo pôco, que oiço barulhar além p' à dos compadres... Tenho um desgosto tã grande de nã ir... - Disse ela, devagarinho, já béque-me repesa de nã ter dêxado comprar os b'lhêt's.
- Se nã se vai, foste tu que nã qu'seste...
Bom, alevantí-me, fiz o que tinha a fazer e lá os vi abalar. Nã disse nada p'a eles nã pensarem qu' ê cá 'tava à coca a bispar tudo.
Mái tarde, 'í p'r essas onze horas em diante, lá abalí caminho da Vila, sòzinho, qu' a minha Maria inda f'cô em casa. Des que, despôs, logo s' encontrávamos no adro, ô fim da missa.
Tã penas apontí ô campo da fêra p'ra baxo - o campo da fêra era, naquele tempo, ond' é, hoje, o estacionamento de carros debaxo do chão - e alcanço a Fonte dos Chorõs, estranhí logo ver um gentío tã grande ali à porta do Entradas, mái pensí, c'm' aquilo era p' aí à hora rigular, inda nã tinham ido p' à missa.
Dô más uns passos p' â frente, vejo um abêrão preto a luzir no mê da famila, par'cé-me o do mê compad'e Jôquim do Barranco. Um chapéu d' aba larga qu' ele tem e faz presunção de levar sempre q'ondo vai algum lado. Mái pensí qu', àquelas horas, já eles 'tavam fartos de 'tar em Lôlé.
Asomí-me melhor, mái nã l'e via a cara. Ele é assim p' ô baxo com' ê cá, quái até um coisinho emblôtado. Mái, lá fui, lá fui, 'té que dí com ele, de costas, a esbracejar e a clamar alto, com-m' ôs ôt's quái tôd's, qu' aquilo par'cia uma fêra com o rèclame da banha da cobra e tudo...
Dô-l'e uma manetada nas costas, devagarinho, qu' o homem 'tava desalvorado, ele vira-se, bom, nem par'cia o mê compadre qu' ê conheço:
O abêrão, de lado, quái a cair da cabeça, o colete castanho com dôs botõs desabotoad's, a camisa com o colarinho com uma ponta p'ra fora ôtra p'a drento e toda desfraldada, par'cia ele qu' andava a vender aguardente, até as calças l'e tinha descaído e já as andava a pisar com os sapatos do D'mingo... Isto p'a nã falar da cara dele. Até 'tava desfigurado e o suôr corria-l'e em bica désna da testa até ô bescoço.
Dig'-l'e:
- Compad'e, mái atã o que foi isto? Inda aqui a umas horas destas?!... Nã me diga qu' o chòfer desquecé-se de mecêas... Ó saria a camineta que teve algum furo?...
Punhéfra, dá-l'e uma ravasca, vem d'rêto a mim, de braços abertos, par'cia que m' ia engolir:
- Compad'e Refóias, nã se ponha com coisas!... Olhe qu' ê já nã ' tô bom... Nã me diga nada!... Nã me diga nada!... Olhe qu' ê já nã sê o que faço...
Aí vi qu' aquilo 'tava méme ruim. O melhor era nã me descudar munto e ver se l'e dava fêto passar aquelas ganas.
- Ó compad'e, 'pere aí, nã s' a borreça com-migo, qu' ê sô sê amigo. Venha dái, vamos beber ali um calcesinho ô Entradas e nã se fala mái nisso. Ê nã no qu'ria apequentar, homem...
- Se vomecêa l'e sucedesse uma coisa destas, tamém nã havera de 'tar contente. Mê belo dinhêrinho... Logo ê cá paguí tudo naquele dia. Mê belo d'nhêrinho... - D'zia o compad'e Jôquim quái a chorar, já com as vistas chêas d´água.
Enq'onto ele falava, pus-me a olhar bem à roda de mim.
Aquilo era quái só m'lherío, todas com rôpa do D'mingo, a C'mad'e C'stóida um coisinho mái adiante, com a sua camisêra toda vaporosa, conversando com a ti Zabel T'mé, toda de preto qu' enviuvô faz dôs anos, a Cilinha nã na vi, do ôt' lado umas além de trás da Perna da Negra, ôtras do lado da Mariôila, tudo com bolsas e cestas de verga, daquelas adonde se leva o farnel, uma até tinha uma alcôfa com as asas atadas com uma tamiça e uma saca do amóino nã sê com o quem...
P' a quem 'tava de fora com' ê cá, era um pagode. Rir é que não, senã o mê compad'e perdia' ô tino. Mái, só cá p'ra mim, enchi bem o papinho...
E foi-se entrando à do Entradas, pensando ê cá que, lá drento, se podia falar à nossa vontade. Qual o quem, aquilo 'tva chêzinho até à porta... Custô-se a chigar ô balcão p'a pedir um calcesinho dela p'a cada um. Os homens tinham passado lá a manhã quái toda e, uma parte deles, já 'tavam escarados.
Lá se pusemos ali a um cantinho e começí a ôvi-los contar o caso.
O compad'e Jôquim vi logo adonde é que 'tava. Dé um arrulho que havera de s' ôvir na rua:
- Aqueles mariolas fugiram com o mê d'nhêrinho!... Mê belo d'nhêrinho... Tanto que me custô a ganhar. E assim m' o levaram...
Ê nã l'es disse qu' ele p'r d'nhêro é pior qu' o mê Trombão p'r rama de fava? Pôs só l'e faltava chorar...
- Ó compad'e dêxe lá isso, pode ser qu' eles nã tenham arrenjado camineta e inda l'e venham trazer o d'nhêro ôtra vez. E nã se desqueça que mecêa inda nã é dos más presicados, qu' eles tiraram-l'e dez mil rés p'a vomecêa pagar logo...
Enqónto isso, 'tava o Manel Cachimbo, ali ô canto do balcão, a falar com o Luís Pipa, mal se davam siguro de pé com os caláiços que já tinham emborcado. D'zia o Manel:
- Aquilo, calhando, o chòfer inda nunca vêo a Monchique e perdé-se, há-de ter ido parar a ôt' sito, quem sabe lá adonde...
- Qual o quem!... - respondia o Luís - Isto foi coisa de desastre. 'Pósto que foi desastre qu' eles t'veram aí p' ô Barracão ó coisa assim. Hõ-de ter fêto a camineta em fanicos e, sabe-se lá, com'm é qu' eles f'caram tôd's. Se calhar, morré tudo...
Ali más p' ô canto, encostados a um barril de vinho vazio munto ferrujento, e, tamém, já munto empeçados, o Cosme da Quinta d'zia p' ô Lexandre Texugo:
- Ê inda tenho aqui uma coisa que me diz qu' eles que parêcem. Atã iam dêxar a gente em terra despôs de se pagar?!... Nunca más eles antravam em Monchique...
E o Texugo, sempre de répla na ponta da língua:
- Parêcem, parêcem... A estas horas 'tam-se eles rapimpando com o nosso d'nhêrinho, sabe-se lá com quem, e a gente aqui à espera, fêtos parvos... Ê, tamém, inda só l'e tinha dado metade. Hoje é que l'e pagav' ô resto. Mái, méme assim, foi esse que perdi.
E, com isto, já havia de passar bem munto da hora rigular, despedi-me do mê compad'e Jôquim e fui andando até à Igreja que já nã tardava munto p' à missa da uma.
Sube, despôs, qu' a camineta nunca chigô a par'cer, os que s' entreteram no Entradas b'beram-l'e uns caláiços em forte e custaram a ir p' a casa com as pelhêgas que panharam e as m'lheres, pobrezinhas, f'caram à espera até mêa-tarde e t'veram que voltar p'ô monte com as cestas carregadas com-mo tinham abalado.
O Manel Cachimbo e o Luís Pipa, despôs do Entradas fechar, viram-nos na Estrada Velha, abraçados um ô ôtro, a ver se se davam sustido de pé.
D'zia o Manel p' ô ôtro:
- Tem cudado qu' isto aqui é de ladêra abaxo. Vê lá se escorregas p' aí...
- Agora, o que calhava era ir-se b'ber mái um calcesinho ali à da Açoreana p' a nã s' ir côxos. - Respondia o Luís.
Nisto, o Manel encalha com a biquêra duma bota no tacão da ôtra, nem teve tempo de d'zer nada. Amajulô no chão.
- Mái atão, 'tá aí um bajôlo no mê da estrada ó quem?!... É assim que se dã os desastres...
O Pipa vai p' ô ajudar a alevantar:
- Vá, sigura-te a mim. Força! Vá...
Conforme faz força, afocinha em cima do ôtro.
- Ah, fado dum ladrão, ê nã te disse p' a puxares p'ra baxo. Ê é que puxava p' a cimba...
E ali f'caram, que tempos, naquele enlêo...
Tã penas s' alevantaram, o Luís Pipa dá um gangueão, fica encostado ô v'lado a ch'mar p'lo grigóiro. O Manel nã dá p'r nada, anda ôs lóres quái dum lado ô ôtro da estrada, semp'e a falocar...
Vem o Luís, ôtra vez:
- Tó, béque-me emborrachí...
E o Manel:
- Pôs, põs, o que calhava agora bem era más um copinho p' à abalada.
E foi, assim, a excursão da Mãe Sob'rana que nã se chigô a fazer. Contado à minha manêra, 'tá visto. Mái se algum de mecêas saber más alguma coisa do que se deu, conte. Nã fique vergonhôso de ter perdido o sê d'nhêrinho e nã ter ido à festa.
Bom, dêxa-me lá ir, qu' ê tamém tenho que m' arrenjar p'a ir à Mãe Sob'rana. Mái nã vô na camineta, nã pensem...
E, Sigunda-Fêra, vamos desmaiar... Olhem qu' o Maio é o nosso dia.
Fiquem-se com Dés.