29 maio 2006

Ch'minés da Vila

Há ch'minés na Vila qu' até dá gosto. E bem muntas.

Cá p'ra mim, as ch'minés mái bonitas da Vila sã as que 'tão nas casas más antigas. E, muntas delas, se nã calha a alguém p' aí olhar p'r isso, inda s' afituram a levar s'miço, qu' isto com' às coisas andam, mal sabe a gente q'ondo é qu' essas casas nã sarão dêtadas abaxo p'a fazerem algum prédio desses que fazem agora que nem dêxam um homem ver o sol.

P'r mod' disso é qu' ê ando semp'e a ver se dô tirado uns retratos p'a me f'carem de lembrança. Às ch'minés e ôtras tantas coisas, qu', em valendem dinhêro, hà quem nã olhe p' atrás e se desqueça qu' os sês avozes deles é que fazeram aquilo e, tantas vezes, a munto custo.

E, ô méme tempo, vô tamém devassando, p'r 'quí e p'r 'lí, coisas que passa-se anos que nã nas vejo. E nã é p'r 'tarem desviadas, é que, muntas vezes, uma pessoa nã s' opõe ó nem s' alembra. Más olhem, passa-se uns pôcachinh's bem espàircidos. Assim às tardes ó ôs d'ming's, q'ondo anda pôca famila na rua, qu' é p'ra eles nã se meterem com a gente...

Inda faz sáb'd' oito dias, q'ondo 'tava a c'mer uma bucha a mê da manhã, prècurí à minha Maria s' ela qu'ria ir dar uma vista d' olhos aí p'as ch'minés todas da Vila. Ela des que nã podia e saltô logo com-migo:

- Ò homem, atã nã vês que tenho o g'verno tôd' da casa p'r fazer... Rôpa p'r passar, a cama quero fazê-la de lavado, barrer a casa e a rua, qu' as v'zinhas já hõ-de d'zer qu' ê cá sô uma cochina...

- 'Tá bem, Maria, se nã vás, nã vás. Nã tens míngua é de te enfèzares dessa manêra. Parêce qu' ê te disse alguma coisa ruim... E, más a más, se nã te faz jêto hoje, pode-se ir amanhã, là p'à tardinha, aí das sês em diante, pert' ó certo, que tamém é boa ocasião.

Más ela nã dé resposta e ê cá p' ali enrolí a bucha com um c'pinho de vinho do tal qu' o mê compad'e Jôquim do Barranco fez dumas uvas qu' ele tinha e ôtras que comprô além p'a Al'zur, e pensí:

- Calhando, dêxo isso p'a d'mingo à tarde, pode ser qu' ela já 'teja de boa avêa e semp'e me vai dar companha.

E foi o que se deu. Assim já bem à tardinha, lá se foi os dôs p'la fresquinha. E andô-se a cotear até já bem despôs do sol se pôr. Corré-se a Vila toda até à Mata-Porcas, vejam lá...

Ê tirava os retratos. A minha Maria ia de galga no ar a ver se lombrigava as ch'minés. E tinha jêto p' àquilo, sa senhora. Inda mal ê nã tinha acabado de tirar uma, já ela apontava com o braço munt' esticado:

- Olha, àlém 'tá ôtra!... Aquela é qu' é bonita. Tira já daqui, vá. Nã vês?! Mal empregada 'tar toda negra e nã na caiarem...

- Sossega p' aí, m'lher, atã nã sabes qu' isto tem que ser fêto com tempo. E nã se pode 'tar virados p' ô sol, senã nã se vê nada... E alembra-te qu' ê tamém nã sê munto bem com-m' é qu' isto fonciona.

Ora nã sê munto bem. Ê nã entendo é nada daquilo... O Zé Manel disse-me que s' acalcava ali naquele botão e é o qu' ê faço. Estragam-se é bem muntas, nã sê perquem.

Umas ficam tremidas, ôtras munto negras, ôtras munto esbranquiçadas... Mái sempre s' apr'vêta quaí uma àmetade. Atã o qu' é que querem más?... Munto já ê faço. Agora é qu' ê havera de ter os mês vinte anos, qu' ê logo te d'zia...

P'r falar nisso, vê-me à idéa a pena que me dé duma amiga da minha Maria - a Franc'squinha Rios. Ia-se ali à Portela, diz a minha Maria:

- 'Tá além uma m'lher à janela, aquil' é a Franc'squinha...

- Adonde? Nã vejo ninguém...

- Parvo... Se nã ser ê cá a te d'zer, passas p'a famila e nã vês ninguém. Olha bem além nos altos daquela casa, nã vês?

C'm' é qu'ê havera de ver. Atã aquilo inda era uma lonjura parva e contr' ô sol... A minha Maria tem umas vistas que nem um sapêro. Vê tudo. É que nã dêxa escapulir nada...

Pôs, olhe, a pobre da Franc'squinha é que nã se pode gabar disso. Chigamos ô pé dela e ela nã dé p'r nada:

- 'Teja com Dés, Francisquinha. Que tal 'tá de saúde?

- Ai, venha com Dés. Mái, diga-me lá quem é vomecêa qu' ê já nã dô alcançado quem passa na rua... Mês belos olhinhos qu' ê tinha q'ondo era nova e agora já nã m' ajudam nada...

- Sô ê cá. A Maria. Há tant' ô tempo que nã na via. Já tinha sôidades.

- Ai... Agora é qu' ê l'e 'tô conhecendo a fala... Atã o que se faz? Olhe, nã há nada de tempo qu' a minha filha se foi imbora. 'Teve aqui tod' à tarde com-migo. E s'a gente falô em si... Que sã as duas do méme tempo, nã são?

Foi o qu' a minha Maria quis ôvir... Aquilo dé assunto quái p' ô resto da tarde. Se nã sô ê cá a me voltar p'ra ela e fazer assim um coisinho de má-cara, inda, estas horas, se 'tava lá. Aí nunca mái s' alembrô das ch'minés nem de mái coisíss'ma nenhuma...

Q'ondo a despegado de lá, ela atão portô-se munto bem. Méme já com um sapato a l'e fazer uma roedura num pé e um calo a atazanoar no ôtro, inda foi ela que quis ir até ô fim da viaja. Pobrezinha, até já me dava dó, tanto coxeava dum lado c'm' d'ôtro:

- Ó Maria, vê lá se 'tás p' aí munto empeçada, volta-se p'a trás... Nôt'a ocasião logo se vê o resto.

- Qual o quem!... Vai lá andando, enqónto ê ponho aqui um lenço na roedura, qu' ê já t' 'panho más à frente. Isto nã é nada...

Ora nã era nada. Já l'e faltava um pedaço de pele p'r cimba do calcanhar qu' até se via ô longe... O que l'es dig' é qu' ela, méme côxe-pé, côxe-pé, lá foi e pedia meças a andar êm minha companha.

Pôs olhem, fartamos-se de ver ch'minés qu' é uma coisa qu' a famila, as más das vezes, passa com as vistas em baxo e nã alevanta a galga p'a ver o que 'tá lá p'r cimba dos telhados.

'Tá bem qu' elas, as mái bonitas, 'tã todas quái ô abandono, mái vamos a ver s' os donos, ó p' aí a Câmara ó coisa assim, arrenjam, p'r más que nã seja, um coisinho de cal p' às porem assim com uma cara mái jêtosa.

De manêras que, mecêas façam com-m' à mim. Q'ondo andarem na Vila olhem tamém p' ôs altos das casas e, mòrmente, p' àqueles mái antigas e já fêtas uns canecos, e logo me contam.

No fim, inda se foi a um sito do mái bonito que pode haver, qu' ê logo l'es conto um dia destes. E p'a acabar, assomem-se aqui se querem ver mái umas q'ontas ch'minés das qu' a gente andô a devassar.

E p'r aqui me fico. Até ôtra ocasião.

27 maio 2006

Recantos da Vila: As Escadinhas do Adro

As Escadinhas do Adro 'tão munto bem compostas

Estas escalêras, logo por si, já sã bonitas, mái no mê delas 'tá uma coisa que só vista. Já, alguma vez, f'zeram com' ê cá, qu' ia assubindo p'r elas e méme quái lá em cimba, olhí p' ô lado, vejo uma coisa tã jêtosa qu' entrí logo ali prê adentro de rompante?

Pôs, foi o qu' ê fiz melhor. Ia com o ti Zé Caçapo, nisto, entro assim p'ra lá, o homem, que nã sabe ler nem uma letra do tamanho dum boi, fica espècado a olhar p'ra mim e p'à tab'leta que 'tá p'r cima da porta e pergunta, munto contente:

- Refóias, atão iss' é alguma venda nova que 'tá pr' aí? 'Tá munto bem arrenjada...

- Ó t' Zé, atã nã vê que nã é uma venda... Ist' é uma casa adonde vendem coisas de barro, home. Olhe lá o que 'tá aqui a d'zer nestas ripas...

- Ah, vendem aí enfusas e alguidares?... Calha bem qu' ê 'tô a precisar dum alguidar p'a q'ondo mato o pórco picar as carnes. E p'a ôtr's serviços qu' isso é um tareco que faz semp'e jêto p'a tudo.

- Lá 'tá vomecêa... nã é coisas dessas. É bonecos e coisas assim, q'um homem p'a li faz e pinta. E tem aquilo p'a vender ôs 'trangêros qu' eles pagam bem p'r coisas dessas.

Ô mémo tempo, foi-se entrando os dôs. Nã l'es dô encarecido o chêrinho que 'tava logo naquele largo d' entrada. Aquil' era só flores!... E bem tratadas qu' elas 'tavam. O ti Zé nã achô munta graça, qu' ele ia com o engôdo de b'ber uns calaiços lá im cima no café, disse logo:

- Eh'q!... O qu' é que sará qu' a gente vem p' aqui fazer?... Atã s' a gente nã é estrangêros... Até me dé vontade de garrear com ele. Quer d'zer, de l'e ch'mar nomes. Mái nã l'e posso d'zer o anexim dele senã ele marafa-se. Vá lá alguém l'e ch'mar Verruma... Endoida logo.

- Venha lá daí ver isto, que nã se paga nada, e despôs logo se vai adonde se tinha combinado. Atã nã vê qu' o homem tem aqui coisas bem trabalhadas?... Olhe lá ali, p'r baxo do alpendre, aquelas bicas. Até corre água e tudo...

- P'a d'zer a verdade, aquilo até 'tá bem caçado...

Aí já c'm'çô a olhar d' ôtra manêra p' às coisas e até ele é que quis entrar lá em casa.

Q'ondo o homem que 'tava lá vi' a gente s' aprochegar, pôs-se a olhar. E nã era caso p' a men's. Atã, olhem bem. Aquilo era dia de semana, ê cá ia um coisinho mal arrenjado, p'a d'zer a verdade. Levava p' ali umas botas de cabedal com sola de borracha e umas calças de trabalho azus, já bem munto debôtas, e o chapéu tamém já 'tá um coisinho usado.

Agora o ti Zé Caçapo inda ia munto pior. As botas eram cardadas, faziam um barulho naquela calçada que f'cava tudo a olhar, as calças, nã sê se de cotim se do que eram, todas puídas e arremendadas nos fundilhos, a camisa já nã se conhecia a cor, toda remontada, com as pontas atadas num nó ô pé do embigo...

C'm' é o homem nã havera d' olhar. Ele há-de ter pensado:

- Mái o qu' é qu' estes dôs entrôchos vêem fazer p' aqui, senhor?!... Se calha a par'cer algum estrangêro, nem tem nada em fugir logo ô dar com uma coisa destas. E s' o negóiço já 'tá ruim, com estes trapêros aqui, atão, escramontam-me a famila toda, nã vendo nada...

Tenho p'ra mim, qu' isto era o qu' ele 'tava a pensar, mái veja lá com-m' às coisas são. Atã nã é que, inda bem não, até par'ceu d' apr'pósito, antram logo duas m'çatonas grandes, munto jêtosas, chêazinhas de calor - da manêra qu' elas vinham vestidas via-se logo que 'tavam encaloradas - e c'meçam a bispar aquilo tudo.

Mal chigaram ô pé da gente, c'meçam-se a rir. E vá de fazerem p' ali uns miécos e de d'zerem coisas qu' a gente nã entendia. Ora o ti Zé é marafado c'm' mecêas sabem, ê cá tamém gosto da charola, pusem's-se a rir com elas. E lá o dono d' aquilo a olhar e tamém, béque-me, já com um arzinho de gozo.

De manêras que andô-se lá a ver aquilo tudo munto bem. E coisa mái bonita, assim naquele jêto, inda nunca tinha visto. Olhe, tem lá desenhos de tudo o qu' a Vila tem d' airoso. A igreja, o convento, as ruas e casas antigas e munto más coisas da Vila e sem ser da Vila.

Foi uma sast'fação ver qu' a nossa terra tem coisas assim e pessoas com tanto valor. Dig'-l'es, à confiança, p'a irem lá ver aquilo e comprarem o que qu'serem que ficam bem servidos. E tenho a àbs'luta certeza que mecêas tamém vã f'car embasbacados p' àquilo. E apr'vêtem a ir lá p'r estes dias qu' as hortênsias hõ-de 'tar carregadinhas de flor.

Mái voltando ô méme, o rai' das englesas, ó nã sê donde elas eram, nunca mái tiraram as vistas de cima da agente. Pus-me a pensar:

- Mái o qu' é que sará qu' esta velhacas querem da gente, senhor?!... Elas novas, a gente já velhos e entrapêrados desta manêra.

Digo p' ô ti Zé:

- Ó ti Zé, mecêa já viu aquelas maganas semp'e a olharem p' à gente e a se rirem? O qu' é qu' aquilo esperam daqui?...

- Já se vai saber. 'Pere aí qu', em a gente saíndo, fica-se ali a engònhar p'r perto a ver o qu' elas fazem...

Pensí só cá p'ra mim:

- Olha lá o marafado do velho, inda pensa nestas coisas...

Mái, nã tardando nada, vi'-se logo o qu' é qu' as moças qu'riam. Vieram ô pé da gente e vá d' apontar p' ôs dôs e p' a uma maquinazalha qu' uma tinha na mão. Ora, era p'a tirar retratos à gente...

E a gente que s' importô... Foi-se lá p'a fora p' ô alpendre, qu' o homem nã quer que se tire retratos às coisas qu' ele tem lá drento de casa, e foi um vê se t' avias. Retratos de toda à manêra e fêtio...

E assim s' acabô a v'sita a uma coisa tã bonita qu' ali 'tá e, calhando, inda há um ó ôtro que passa ali perto e nã l'e dá p' a entrar. Mái qu' aquilo é uma coisa de categoria, é...

Lá seguimos o nosso caminho, mái, pr'mêro, inda s' olhô bem, cá de cima, p' às Escadinhas do Adro. Tem uma vista do melhor que há. Até se vê a Picota, lá ô longe.

E fiquem-se na paz. Até ôtro dia.

22 maio 2006

A Magnólia do Convento

Esta magnólia, calhando, é do tempo do Marquês de Pombal

A magnólia do convento pode munto bem ser a arve más antiga da nossa serra e nã era d'a admirar qu' ela t'vesse sentido o tremor de terra de 1755 e já ser até crecidinha.

Já há uns belos tempos qu' andava a sentir soidades dela. Olhav'-à cá de baxo e as vistas f'cavam-me presas naquela copa. D'zia qu' havera d' ir lá, mái nã m' opunha. E o empenho era maior de dia p'ra dia.

Ontordia, pensí qu' ela já taria flor e nã me dí sustido. Abalí e fui mémo. Mái, entes disso, fiz cá as minhas contas e vêo-me à cabeça que aquilo, calhando, era d' adregue ê cá dar lá chigado assim sem más nem quem. Qu' ê tamém nã qu'ria andar lá a devassar os cantêros da famila...

E, atão, disse à minha Maria p'a ela convindar uma parenta qu' ela tem, que morô lá p' àquelas bandas e conhêce bem a manêra d' a gente chigar lá sem se f'car tôd's esgateados naqueles balsedos.

- Maria, um dia destes, vô-me àlém dar uma vista d' olhos à magnólia do convento, tu, há-des qu'rer ir tamém, que 'tás semp'e pronta p'a coisas dessas, haveras de falar à tu prima s' ela quer ir com a gente...

- Qual? A minha prima Glòirinha? Sê cá s' ela quer ir...

- Atã, que jêt' nã qu'rer?... Ela gosta daquele sito, já morô lá uma preção d' anos e 'tá-me semp'e a falar naquilo... Nã t' alembras que, q'ondo caíu aquela pernada, daquela vez que fez 'í um vento que par'cia um ciclóino, foi ela que contô à gente e tudo?

- Pôs sim. Mái q'ondo a gente lá foi, já a pernada nã 'tava lá. Nã sê quem é que carregô com ela...

- Sim, m'lher. Vai lá falar, qu' aquil' é uma pessoa com um fêtio do melhor que pode ser e haver e tem semp'e uma boa vontade p'a tôd's, q'onto más p'a ti, que sã as duas tã amigas...

E a minha Maria, com-m' se pela p'r andar no laré, nã fez mái nada senã pôr-se logo a andar caminho da casa da parenta p'a l'e falar no caso.

Oh!... Q'ondo voltô, já tinham combinado o dia e tudo...

- Olha, vai-se d'mingo à tarde qu' a prima calha-l'e nesse dia e a mim tamém me dá jêto. Já 'tá tudo tratado com ela.

E assim foi.

Mái, calem-se aí, aquilo foi um enredo p'a se dar chigado lá... 'Tá tudo embalsado, já nã há caminhos nã há nada. P'a s´' ir lá, só p'r dentro dos cantêros das pessoas, d' ôtra manêra nã l'e vejo jêto nenhum. P'ô lado do caminho do convento, 'tã umas cabanas de cabras e um canzarrão que mete medo. P'ô lado de cima, é só balsas. P'ô lado de baxo nã há passaja. Só do lado do Pomar Velho...

Mái méme assim, nã dí o mê tempo p'r mal empregue qu' aquilo é uma coisa que merêce ser vista. Uma arve daquelas, grossa que sã precisos nã sê q'ontos homens p'a l' abarcar o tróço, duma altura que nem tampôco sê os metros que tem, com mái de duzentos anos de ser desposta ali...

Atã aquilo já narceu pr'mêro qu' os avozes dos nossos bisavozes. Munto pr'mêro...

F'quí foi cá a ramorder numa coisa. Qu'ê nã conheço nada disso, mái achí-a um coisinho com falta de força. Com pôco viço. Béque-me com umas q'onta folhas mái p' ô marelo que p' ô verde. Mái isso há-de ser fernicoques qu' ê meti cá na minha cachimóina...

Já agora, nã fazia tenção disso mái semp'e l'es conto uma parte que se dé' q'ondo a gente 'tava méme quái a chigar ô cantêro da magnólia. C'm' é coisa pôca, nã nos impertenêço munto.

Désna de cá de baxo do prencípio do Pomar Velho até lá im cima, aquilo nã é assim munto desviado, mái é a assubir quái a pique. Atão, foi-se andando devagarinho, qu' as m'lheres era uns trabalhos p'a nã escorregarem naquelas ladêras, comprimentava-se quem sem encontrava no caminho e falava-se disto e daquilo, o que calhava.

Nisto, dá-se com a ti Larinda do Pomar méme à nossa frente. É a quintêra da dona Fernandinha Lopes do Barranco do Banho, que 'tá lá p' ô Baxo Algarve.

A m'lher, méme ô d'mingo, vinha com um casquêro preto, todo rôto, atafulhado até às orelhas, um vestido cor de burro q'ondo foge qu' era uma nóda pegada, mêas cor da pele bem labuçada, que só se via um coisinho, da canela até ô joelho. Nos pés trazia umas borrachêras número qu'renta e tal qu' até ô homem dela haveram de f'car grandes... Bom, aquilo, só de ver, par'cia o entrudo.

E q'ondo ela abre a boca?... Falava de rijo qu' aquilo nã era falar era arrulhar, e tã depressa que qualquer um, só com um gravador, é que dava apanhado o qu' ela d'zia...

- Venham com Dés. Atã o que fazem aqui p'r estes lados? Vieram dar um passêo? Ê cá é que nem tampôco ô d'mingo saio daqui. Tenho semp'e g'verno p'a fazer. O mê Manel, em lugar de m' ajudar, vai p' à venda, dêx' ô serviço todo p'r fazer e inda gasta o abónezinho qu' eles inda p' aí dã à gente tôd's meses e, òdespôs, volta de lá com aquelas gradessíss'mas pelhêgas. Nã vêem? Olhem ali aquele cantêro dos limoêr's... 'Tá tudo na desgraça com falta d' água. Tal é aquela ervaria qu' ali 'tà? Tamém os patrõs nã querem saber de nada, des que nã l'e dá resultado tratar, e a gente é qu' há-de fazer o trabalho todo p'r nossa conta?...

Ê cá desato a rir, que nã me dí aguentado más, tive que me voltar p' ô ôt' lado. A prima Glòirinha pôs a mã na frente da boca e lá ia d'sfarçando. A minha Maria, munto gozona, - béque-me sai à avó que tamém era assim - méme a rir, inda atiçava:

- Pôs, pôs, isto sã tôd's iguás...

- Atã, nã vê, p'a levar um limanito ó dôs p' a casa, aqui vô ê cá toda picada das balsas e chêa de praganas. E aquele mariola metido na venda a b'ber copos d' aguardente... Mái logo, chega aí escarado, inda faz é barulho e põe-se a embelicar aí com os v'zinhos. Com-migo já ele nã faz farinha qu' ê rente-l'e até mái não, qu' ê tamém nã 'tô p'ra isto...

- Ti Larinda, fique-se com Dés qu' a gente inda tem ali uma servicinho a tratar, logo se conversa mái um pôcachinho p' à ôt'a vez.

Cortí-l'e ê cá a conversa a ver s' a gente se via livres dela, senã inda se 'tava lá a estas horas, qu' aquilo a m'lher parêce uma graf'nola. Em c'm'çando, nunca mái para...

De manêras que só ô fim disto tudo é que lá t'vemos à roda da magnólia. Só f'quí com um desgosto. É qu' ela inda nã tinha flores.

'Tavam uns botanit's assim já quái a qu'rer abrir, mái só dali a uns dias. E ê cá, agora, nã tenho vagar p'a poder ir lá ôtra vez. Pacência e cara alegre.

Se vomecêas qu'rerem e puderem vã lá entre esta e a semana que vem qu' ela já há-de ter umas q'ontas flores abertas. E olhem bem p'ra cima nã vá ela dêxar cair alguma pernada...

Fiquem-se com Dés, até um dia destes.

Recantos da Vila: A Travessa das Guerrêras

A Travessa das Guerrêras parêce uma estufa de flores

Quái sempre, tem-se as coisas na frente e nã se as vê. E dig' isto p'rqu' a minha Maria, marafada, tôd's dias, andava a matinar com-migo:

- Ê cá g'stava d' ir à Travessa das Guerrêras. Des qu' aquilo 'tá tã bonito... Ali a prima Jôqu'nita já foi lá um dia destes, despôs da missa, e g'stô munto. A gente havera d' ir tamém. Ó home, vai lá com-migo à Travessa das Guerrêras. Custa-te assim tanto?...

E ê fazia que nã ôvia. Logo, p'rque nã sabia com-m' àquilo 'tava e, despôs, p'rqu' a gente nã l'e pode fazer vontade log' à pr'mêra, senã elas tornam-se soberbas... Más ela, inda bem não, punha-se ôtra vez com aquela cantilena. E ê calado.

Até que foi, foi, lá terminí qu' uma tardinha destas ia-se lá. Ora, nã l'e fosse ê d'zer otra coisa, ela quis ir logo no mémo dia. Ê, tamém, p'a nã me apequentar, fui e pronto.

Atão e nã é qu' ela tinha r'zão?!... Até f'quí parvo. Raça!.. Aquilo 'tá lá uma coisa tã bem trabalhada que nã se pode d'zer que se dá o tempo p'r mal empregue... E nã cudem qu' ê dig' isto p'r d'zer, qu' ê atão nunca tive jêto p'a pastelêro. O que tenho p'a d'zer digo logo.

Inda nã se tinha chigado lá - 'tava-se p'aí a mê da Rua do Porto Fundo - lombrigo logo a prima Jôqu'nita à rua abaxo toda munto a olhar p'a um lado e ôtro, fazendo que nã via a gente. Aquilo foi um foguete, 'tava-se ô pé dela.

- Atã, primos, o que fazem aqui p'r estas bandas?...

Diz logo ela munto l'gêra, fazend'-se de novas, com-m' s' ê cá nã sabesse qu' a minha Maria l'e tinha contado qu' a gente ia lá...

- A gente viemos s' assomar aqui à Travessa das Guerrêras... atã e mecêa?

- Eh'q, vinhe ali à farmácia de cima ver s' eles já tinham aviado uma recêta qu' ê dêxí ali esta manhã, mái 'tá p' ali um reméd'o que nã há. Des que só lá p' amanhã ó despôs é qu' há-de chigar.

Diz logo a minha Maria:

- Atã venha daí com a gente, prima. Sempre paleamos as duas um coisinho e, despôs, volta-se todos p'a baxo.

- Béque-me nã me dava munto jêto agora, tenho p' além umas coisinhas p'a fazer...

Responde-l'e a prima Jôqu'nita, e, ô méme tempo, dá logo uns passinhos d'rêto à Travessa das Guerrêras. Ora nã l'e dava jêto ir. Ela vêo ali d' a pr'pósito...

E lá se foi andando ali prê acima. 'Tá claro qu' elas a s duas c'meçaram a tramelar, nunca mái se calaram. Ê sê cá s' elas chigaram a ver alguma coisa daquilo?!...

Mái, falando verdade, gostí do que vi. Tudo munto bem arrenjadinho, as flores bem tratadinhas, até as pedras do v'lado 'tã pintadas. Quem fez aquilo merêce bem uma gabadela. Nã sê, ô certo, quem foi, mái d'zeram-me que sã méme os que moram lá que fazeram e ôlham p'r aquilo. Pôs que seja com munta saúde e bençoados p'r serem assim tã crusidôsos.

Ia ê cá a devassar aquilo tudo munto bem, pensí:

- S' os estrangêros sabessem disto, apreciando eles com-m' aprecêam coisas destas, havera de ser aqui um correpio deles, tôd' ô dia...

E vá d' olhar p'ra cimba, qu' aquilo até dava gosto de ver aquelas flores tã bem aconch'gadinhas. E o chêrinho qu' aquilo dêtavam... Já nã falando da fresquidão, qu' aquilo 'tava um dia de sol, e bem quente, e ali era uma sombra qu' igual só no Barranco dos Pisõs, debaxo do plátano a ôvir a água a correr...

Nisto, dô mái um passo p'ra cima semp'e olhando p' às flores, béque-me sentí uma coisa ô pé de mim. Olho de repente, até f'quí ensampado... Logo, só vi assim um bescoço, mái a seguir, alevantí um coisinho a cabeça, dô com a cara duma estrangêra, qu' até me passô assim uma coisa cá p'r dentro.

A m'lher tinha bem um palmo a más que eu, cabelos amarelos, só trazia uma blusalha e uns calçanitos im cimba daquele corpo e vá de rir p'a mim. Punhana!... Até f'quí de boca aberta, todo arrepiado e d' olhs arregalados sem saber o qu ' havera de fazer...

Salta a minha Maria, que já ia más à frente a tramelar com a prima, mái repáirô logo no que se 'tava ali a dar:

- Atã, ficas aí tôd' ô dia ó quem?!... Em lugar de vires aqui conversando com a gente, vens 'í atrás sòzinho, parêce que 'tás zangado...

Ora, munto qu'riam elas qu' ê fosse lá ô pé... Ela f'cô logo foi ciosa d' ê ter ôlhado p' à estrangêra. Mái atão, só s' uma pessoa fechasse os olhos. E uma coisa daquelas nã parêce tôd's dias...

Mái tamém, atrás dela lombriguí logo um estapôr, grandalhão que fazia quái dôs de mim, d' alprecatas e óculos de pó, com a pele toda encarniçada do sol, dôs braçalhõs que nem um macaco qu' ê vi, uma ocasião, lá no jardim zológico de Lisboa q'ondo fui a Fátima numa excursão. Pensí:

- Põe-te más é a mexêr daqui, senã dás-te mal p'r dôs lados. É a tu Maria e é este trambôlho com cara de pôcos amigos...

E lá d'sfarçí a coisa e fui andando prê acima. Aí, elas já nã esperaram p'r mim nem nada. Puseram-se no mémo faladoiro que vinham e já nã emportaram qu' ê f'casse p'a trás.

Mái, inda o que me valeu foi que, chigando ô canto de cima, 'tá lá uma venda. Venda dig' ê cá, qu' eles agora alomeam aquilo p'r bar. E, p'r sorte, aquilo tem umas mesas cá na rua, a dar assim p' às flores, e quem havera de 'tar lá assentado?... Nem mái nem men's qu' o Zé Manel, o filho do mê compad'e Jôquim do Barranco.

'Tava ele, a Cilinha - o marafado já a atracô... - e mái um moço e uma moça amigos dele. Ora, tudo lá se comprimentô, c'm' é que vão c'm'é nã vão, o que se fazem o que nã se fazem, e as m'lheres foram andando prê cima, semp'e na méma conversa.

Ê cá f'quí mái um coisinho, nã foi p'r nada, mái 'tava-me a luzir o olho p'r um calcezinho de quasequer coisa... Até qu' o Zé Manel lá se resolveu:

- Ó ti Refóias, se l' a petêce, assente-se aqui um coisinho ô pé da gente e beba-l'e aí um porrete...

- Eh'q, tenho quái vergonha póss'-me tornar rançoso, mái se nã s' emportam...

- Que jêto uma coisa dessas?!... Nã diga isso, parente. Assente-se já aqui qu' ê vô enc'mendar uma bebida p'ra si.

E o Zé Manel, tã penas disse isto, levanta-se e vai lá p'a drento.

Ê f'quí-me e nã disse nada, mái pensí logo qu' aquilo nã ia sair dali boa coisa, qu' isto idéas do Zé Manel hô-de dar semp'e em gozo. Nã sê a quem é qu' ele sai assim, mái, désna que foi trabalhar lá p' a baxo p' ô Algarve, dé' cá num gozão...

Nã se passô tempo nenhum, já ele lá vinha com um copo na mão, daqueles munto compridos, com uma bobida lá drento. Vá lá qu' o copo nã 'tava chêo, q'ondo munto, 'taria p' aí uma terça parte e o resto era tudo pedaços de gelo...

- O qu' é que me trazeste p' aqui, Zé Manel? Olha qu' ê nã 'tô ac'st'mado a estas bobidas... Vê lá bem o que fazeste...

- Beba, qu' isso bom, parente. Nã tenha medo qu' a gente tamém 'tá a b'ber do mémo. Até a Cilinha gosta...

E p'scô o olho p' ô ôtro moço que 'tava lá e fez assim um miéco à cara qu' os ôtr's deram tôd's uma carcachadinha.

Pensí:

- Já 'tô charingado com eles. Andam, andam, querem-me empurrar p'a qui com alguma pelhêga qu' ê cust'-me a alevantar daqui... E, más a más, qu' ê nã 'tenho c'stume de bober coisas assim tã frias, inda panho alguma const'pação.

Más eles brigaram tanto com-migo, qu' ê lá me resolvi, pus o copo à boca e vá, bebe-l'e aquilo tudo duma assentada. P'a ser franco, até que nã me sôbe munto mal. Um coisinho frio de más, mái beh!...

Fartaram-se tôd's de rir... Béque-me foi p'r ê cá b'ber aquilo tudo duma vez. Más é c'm' à gente usa fazer aqui q'ondo se bebe um calcesinho dela... Atã aquilo tem algum jêto 'tar ali só a molhar os bêços que nem uma galinha a b'ber?!...

O Zé Manel, alevanta-se, pega no copo e abala ôtra vez lá p' ôs lados do balcão. Ê pensí qu' ele ia pôr lá o copo nã fosse ele cair ô chão e se partir p' ali. Qual o quem, volta com ele inda com más do que da p'rmêra vez...

- Vá, 'tá aqui ôtro que mecêa chigô atrasado e a gente já se tinha b'bido ôt'a rodada... Beba à confiança qu' isso só leva aí um coisinho de vodka e o resto é laranjada.

- Zé Manel, vê lá o qu' é m' arrenjas p' aqui... Ê sê cá o qu' é vodka?!...

Dig'-l' ê cá, inda mái desconfiado e já a sentir uns calores a me subirem à cabeça.

- E inda se faz uma coisa. - Responde ele - Agora, bebe-se tôd's ô méme tempo e duma golada só com-me vomecêa fez, inda agora. Vá, malta. Às nossas saúdes...

Pegaram tôd's nos cop's, olharam p'ra mim, ê tamém peguí no meu. Sem más esta nem más aquela, enfiaram aquilo p'las goélas abaxo, ê vi-me obrigado a fazer o mémo. E o que l'es sê d'zer é qu' aquela bodega até já me sôbe melhor...

Neste entrementes, as m'lheres, que tinha ido p'ra cima, estranharam ê nã par'cer, vieram-se assomar à quina da rua. Foi a minha sorte. Apr'vêtí logo p'a me safar...

- Zé Manel, tenham pacência qu' ê, ôtro dia, logo pago tamém uma rodadinha. Agora 'tão àlém as m'lheres empatadas p'r mim, tenho qu' ir andando.

- Ó ti Refóias, nã faça isso, dêxe-se 'tar mái um coisinho qu' a gente hoje é que paga tudo. Diga p'a elas virem tamém.

O qu' ele qu'ria sê ê munto bem. Ê já 'tava a sentir a cabeça a andar à roda... E tamém vi a cara qu' a minha Maria fez q'ondo m' alevanto e, em lugar d' ir p'ra cima p' ô lado delas, dô logo dôs passos prê abaxo... Mái uma galhofa p' àqueles judeus...

Mái, lá tomí rumo e tornejí p'ra cima. Méme a custo, cheguí ô pé delas sem ganguear mái vez nenhuma e dí logo ordes p'a se voltar p'a casa.

- Maria, tem's qu' ir já p'a casa qu' inda se tem lá o g'verno tôd' p'r fazer e isto já passa de mêa tarde.

- Atã, des que s' ia tamém ali às Escadinhas do Adro...

- Olha fica p' à semana.

Ê 'tava-me era de'jando de safar dali que, cada vez, me sentia mái enzamboado... E olhem qu' as Escadinhas do Adro tamém 'tão bem bonitas. Tã penas tenha jêto, logo l'es falo nelas.

Munta saúde p'a vomecêas e passem munto bem.

16 maio 2006

Recantos da Vila: A Rádio Fóia

Daqui carregaram-se muntos sacos de guano e batatas de semente

Até o Grémio mudar p'a donde 'tá hoje, era aqui que foncionava. Agora, nesta casinha tã bem aconchegadinha, qu' assim é qu' os que podiam tinham as casas, nôt'o tempo - brancas com riscas azus - 'tá o Rádio Fóia, um posto de tel'fonia qu' é o que tem mái famila a ôvi-lo em Monchique, no Algarve lá de baxo e quái tod' ô Alentejo...

Agora vejam lá bem s' a gente aqui na serra, nã s' hã-de 'tar semp'e a rever numa coisa destas. Com tantos pôstos aí p'r esse Algarve e Alentejo e nenhum chega ô pé do Rádio Fóia!... E atão qu' isto nã custa nada dar com ele. Olhem, é só pôr o pontêro da tel'fonia no númaro 97.1 FM, é menino!, aquilo c'meça log' a tocar umas modas qu' até dá cobiça...

Más ê cádí com uma coisa inda más ent'ressante. Atã nã é que panhado o Rádio Fóia a tocar aqui no mê comp'tador?!... Até 'tô parvo com isto. Vomecêas hã-de exp'r'mentar a ver se com os sê's tamém se passa o méme. Olhem, faz-se assim:

Pr'mêro acalquem aqui: "ligação p'ô Rádio Fóia".

Despôs de passarem a introdução, acalquem lá numa coisa que diz "emissão ON-LINE".

Pronto. C'meça-se logo a ôvir. Méme assim, o qu' os homens nã fazem já...

E atão qu' aquilo dã de tudo: Notíças, mús'ca, coisas p'a rir, disc's pedid's, bola, missa, conversas com a famila que 'tá a ôvir, ê sê cá...

Más, ôlhando bem p' àquele retrato, alembrí-me que, naquele alpendre, trinta anos p' atrás, em lugar dum carro, havera de 'tar ali um burro ó dôs à espera que l'e pusessem umas sacas d' amóino ò de batatas de semente em riba, p'a levar p' ô monte.

Calhando, até podia ser uma burrinha qu' o ti Antóino da Refóias, Dés o tenha com Ele, tinha - a Laranjinha - que 'tava pôco ac'st'mada a trabalhar, mái, de q'ondo em vez, semp'e levava uma carguinha. P'a d'zer a verdade, aquilo o homem béque-me tinh' ô bicho mái p'a l'e dar companha qu' ôtra coisa. Nunca s' amontava a cavalo e cargas era raro l'e pôr im cima...

Uma ocasião, 'tava p'a lá empeçado com o governo dele, disse-me s' ê nã l' ia b'scar dôs sacos de batatas de semente, das de fora, qu' ele tinha enc'mendado no Grémio. Ê cá, nesse tempo, era novo e 'tava pôco ac'st'mado a lidar com bestas, pensí:

- Eh'q, isto tamém nã há-de ser nada do ôt'o mundo... Já tenho acartado umas cargas de lenha na Laranjinha, ela é um coisinho raguingosa, mái aquilo é p'r ser nova, ê, 'dalguma manêra, m' hê-d' amanhar...

E disse-l'e que sim. De manêras que, nessa méma tarde, lá abalí com a Laranjinha caminho do Grém'o.

Aquilo, p'a m' amontar, foi logo uns trabalhos. Leví o b'chinho ali p' ô pé do pestoiro, cada vez qu' ê fazia menção de m' amontar, ela dava logo uns passinhos p' à frente. Puxav'-à p'a trás, dava-se logo o mémo.

- Aí, ó! Quetinha. - D'zia ê cá, esticando-l'e bem a arreata. Eh'q, nã servia de nada... Nem serrilhão tinha...

Mái, à tercêra, passa-me uma coisa aqui p'a cabeça, até dêxí de ver... Punhana! Jog'-me a fugir atrás dela, tomo balanço, agarr'-me à arrabicha com uma mão, com a ôtra dô uma manetada na parte da frente do aparelho, vá um salto p'a cima do animal.

O bicho estranhô aquilo, estancô, em lugar de ficar amontado na albarda fui-l'e parar ô bescôço... Desata a andar à roda, entonteci, tive que me jogar p' ô chão ôtra vez. A salvação foi o ti Tóino par'cer p'r 'lí e sigurar-l'e na arreata. Só assim é que me dí posto im cima dela. Despôs, foi semp' a andar até à porta do Grém'o, qu' a burrinha lá l'gêra a andar era ela. A mê caminho, inda andô ôs quatro e tudo... Munto gostí ê daquilo... Pa'rcia um cavalinho.

Nã qu'rendo empertencer, semp'e l'es conto o resto.

Despôs dos pagar, precisí de carregar os sacos das batatas. Ponh'-l'e o baraço de carregar em cima do aparelho, o bicho nã sossegava. Nã sê s' era mosca cavalar que l'e picava nas partes, s' era atabão que l' andava de roda das orelhas. Contanto qu' ela nã aparava queta.

Peço ajuda a um homenzinho méme lá do Grémio e ele, de boa vontade, sigurô no saco enq'onto ê cruzí o baraço de carregar e pus o ôt'o saco do ôt'o lado. Aí, foi só l'e pôr a sobrecarga p'r cima e apertar. Mái, desqueci-me duma coisa.

Tinh' ô garrôcho assim metido p'r baxo da manta de trapos que tapava a albarda, na parte de trás, quái a tocar nos atafazes, e nã m' alembrí que tinha qu' apertar a sobrecarga com ele. Ora, nã andô tempo sem a carga c'meçar a pender p' ô lado. Digo p' ra mim:

- Tó diacho! Querem ver qu' isto vai tudo baldear no chão?...

- Aí, chó! Aí!... - Dô logo de vaia à Laranjinha e encost'-m' ô saco p' ô sigurar.

Foi q'ondo repairí no garrôcho. Lá tive qu' end'rêtar a carga e, atão, já dí o aperto como deve de ser. E aí foi a gente, ê cá e a Laranjinha, semp'e naquele passo miudinho mái l'gêro qu' ela tinha, até ô monte.

E, mái uma vez l'es digo, liguem o Rádio Fóia se querem uma coisa de categoria. Ê cá, agora, é só ligar o comp'tador, acalco logo aqui neste botão,

pronto, em men's de nada, 'tô a ôvir modas do melhor que há... Olhe, agora 'tá a dar uma tocar fole. Que belo corridinho...

E fiquem-se na paz, ôvindo o Rádio Fóia. Até ôtro dia.

Marmelete: No Cerro dos Picos inda há carvalhêras

Carvalhêra com as su's carvalhas - uma velha ôtra nova

Désna que me conheço, semp'e foi o sito adonde más carvalhêras vi foi no Cerro dos Picos. Inda naquele dia que lá fui com a minha Maria, f'quí incantado com elas. Vejam lá qu' aquilo ardé' tudo nos encêndios e elas já arrebentaram. E 'tã bonitas. Com carvalhas e tudo...

Quem tamém havera de gostar de ver aquilo, calhando, era aqueles senhores dum blog qu' ê já uma vez falí aqui - o Dias-com-árvores - que sã lá das bandas do Porto e, tôd's dias, põem retratos de flores e arv'es p' à gente ver. Uma coisa que dá cobiça... Sã famila que estudô e sã munto crusidôsos. Cada vez gosto mái de devassar o blog deles. Assomem-se tamém lá que nã ficam repesos.

Mái, voltando ôs Picos, naquele dia que lá andí, alembrô-me dos mês temp's de môç'-pequeno, inda bem pequenalho, q'ondo corria aqueles cerros tôd's sòzinho ó com uns q'ontos amigos em companha, qu' era um espàircemento qu' a gente tinha. Tudo servia d' entretenga p' à gente...

Olhe, as carvalhas tanto eram bolas com-m' serviam p'a jogar ô belindro. Os madronhos, os martunhos, as samôcas e as amoras das balsas c'miam-se, nem tinham precisão de ser lavados nem nada... D'zia a gente:

- Bich' qu' ê com-mo nã me come ele a mim!... - E vá p'ra baxo. E era uma risada.

Neste tempo, mái ó men's do Maio até S. João, tamém se tinha c'stume d' ir à prègunta de maios p'a se c'mer. Era umas coisécas p' ô marelo e encarniçado que narcem das raízes das estevas e têm umas maminhas pequenalhas chêas assim duma lisga branca quái sem sabor. E c'mia-se aquilo. Nã sê s' era bom s' era ruim.

Uma ocasião, demos com um poder deles numas estevas que p'a lá 'tava, fartam's-se de c´mer. Despôs, o Zézinho pôs-se p' ali a esmigalhar uns q'ontos com duas lajas de pedra. Cudava-se qu' era p' a ele c'mer. Eh'q!... Q'ondo o Fernando mal s' aprecata, pega naquela m'stela e esfrega-l'e na cara...

Ai menino, o Fernando, q' era assim pequenalho e rab'ludinho, mái munto gènudo, logo, f'cô assim ensampado sem saber o que fazer, mái, despôs... C'meça a fugir atrás do Zézinho p'r aqueles matos abaxo, aqui caio além m' alevanto, panhô-o, já lá do ôt' lado, assim numa vagazinha, caiem os dôs enfelpados p'a drento dumas carvalhêras, c'meçam a engav'lar, foi o bom e o bonito...

Se nã é os ôt's os irem lá desapartar, nã sê o qu' aquilo dava. Méme assim, f'cô lá um espòjêro tã grande ó tã pequeno, que qualquer um que visse aquilo, pensava que tinha 'tado lá uma vaca dêtada... E munta sorte t'veram eles, que p'r um nadinha nã batiam com a cabeça num bajôlo que 'tva logo ali à banda de lá.

Nã l'es digo nada, q'ondo o Zézinho chigô a casa com a cara toda labuçada, a rôpa toda suja e um arrasgão num joelho das calças, ia levando uma remessa da mãe, que já tinha levado a tarde intêra a bràdar por ele e ele nunca acudiu. Dum sermão bem dado nã se livrô. E inda viu jêtos duma varinha de lentisco, qu' a mãe tinha lá, trabalhar...

Despôs de me passar isto tudo p'la cabeça, olhí à minha roda. E olhem que f'quí embasbacado ô ver com-m' aquilo tudo se tinha refêto tã depressa. Veja bem qu' inda há só dôs ó três anos qu' a serra ardé toda e já 'tá tudo verde ôtra vez...

Ele é carvalhêras, madronhêros, lentiscos, traviscos, mongariças, jastras, rasmonos, bom, nunca mái aparava... E tudo apertado no mê de calitros, qu' esses marafados adonde se despôem nunca mái desparêcem. Só o qu' ê vejo mái empeçado sã as sobrêras. Essas, pobrezinhas, perderam-se muntas... E as qu' inda deram uns arrebentos, umas perderam-se a seguir e ôtras nunca mái são nada.

E inda me dé tempo p'a devassar aquela linda vista p' ô lado da Fóia, mái f'quí logo descorçoado q'ondo repàirí naquela gradessíss'ma p'rquêra qu' a TMN fez p' ali. Nã vêem?...

O qu' é que faz ali aquele cas'nhôto branco sem jêto nenhum?... Nã bastava a entena senã inda más aquilo... Malsoado d'nhêro, que quem no tem faz o que l' apetêce...

E pronto. Q'ondo calhando logo se fala mái um coisinho, qu' ê hoje béque-me 'tô desnoitado, qu' a minha Maria ontem à nôte nã me largava, só qu'ria era conversa, e q'ondo acarrí no sono já era p' aí uns dez horas. Ó nã sê se nã saria mái tarde ainda...

Até ôtro dia e Dés os ajude.

15 maio 2006

Marmelete: O Cerro dos Picos

Nas entradas da freguesia arrecebe-se este comprimento

Q'ondo se chega às estremas de Marmelete é-se comprimentados desta manêra. Quem é que nã fica sast'fêto de ser arrecebido com uma coisa tã bonita e tã bem afêçoadinha...

Pôs ê cá, ô ver isto, dé-me logo vontade d' ir correr aquilo tudo. E fui. Quer d'zer, andí p'r lá a tarde intêra, mái nã vi nem das cem partes uma... E nã f'quí repeso, que, tã penas tenha ocasião, vô correr más. Ah, isso vô...

Aquilo até foi bem caçado. Vinha-se ali daquelas bandas da Varja do Farelo, tinha-se ido ver uns parentes qu' a minha Maria tem p' lá, e 'tava-se quái a chigar à Folga. Mal se vê a estrema da freguesia, vejo béque-me um marco com este desenho im cima.

Parí a b'cicleta a motor e vô-me ver. Gostí tanto qu' até tirí um retrato. E salta-me da boca:

- Maria, ê nã te disse que Marmelete, agora, já é ôt'a coisa? Isto, qualquer um que chega aqui, vê logo 'tá numa terra qu' é uma cat'goria... Nôt's temp's, é qu' eles faziam pôco da gente. Agora?!... Até vêem cá de gosto... E nã te parêce que morêce a pena?

- Sim, home, mái à'xelêa-me lá aqui, qu' ê nã posto o capacete bem e assim nã vejo nada com ele todo pendido p' à frente.

Diz-me ela, munto empeçada, p'r ca'sa do capacete l'e ter escorregado p' à cara com a travaja.

- Ó m'lher, atã põ's isto im cimba do lenço e despôs ele desanda-te p' à testa... 'Pera aí... Adonde é que 'tá a fivela? Pronto, já 'tá bem.

- Olha, 'tá bonito. Quem fez isto é crusidôso...

Ô meme tempo, olhí assim p'a norte, qu' ê tenho c'stume d' olhar ô astro p'a ver que tempo é que se vai ter, 'tava bem munto embrulhado mái ele nã chove. E o que vejo? Vejo o Cerro dos Picos, lá munto ô longe, inda desviado da gente mái duma hora a pé, bem umas duas. Mái de b'cicleta a m'tor é coisa aí duma mêa hora. P'a nã ir munto desengalgadoprê acima...

Pensí:

- Vô-me lá agora, que já nã m' alembro q'ondo lá fui a últ'ma vez...

- Maria, atã e s' a gente se fosse até além ôs Pic's ver aquilo? Ist' é d'mingo, inda é mêa tarde, os dias já sã grandinhos, que dizes?...

- E a gente dará lá chigado com a b'cicleta?...

Responde-me ela, toda acagaiçada, qu' aquilo a carrelêra é bem munto enpinada.

- Ora damos, atã com tantos anos qu' ê tenho d' andar de b'cicleta, inda nã dêxí d' ir a sito nenhum... E já alguma vez ela jogô a gente p' ô chão?... Nunca. 'Tá bem qu' aquilo tem lá uma ladêra temente, mái nã tenhas medo que chega-se lá bem.

- Foiteza é qu' ê cá nã tenho nenhuma...

Inda me disse ela quái com-m' quem d'zia que nã tinha lá munta vontade d' ir.

Más ê cá amontí-me na b'cicleta, ela nã teve ôt' remed'o senã amontar-se tamém e toca andar p'l' aquelas ladêras acima...

Q'ondo s' ia ali ô Enxameador prê acima, c'meçô a dêtar um torno de fumo do escaple e fazia uma urrada p'l' aquela chapada qu' até os porc's, daquelas curraletas que lá 'tão, se calaram tôd's... Isto p' a nã falar de q'ondo s' ia lá méme quái ô canto de cima, já perto do talefo. Punhana! Panha-se uma cova, a minha Famel-Zundap dá um pulo, jogo os pés ô travão, a minha Maria dá-me um cabeçadão com o capacete dela no meu, até vi estrelas...

Bom, tive qu' aparar. P' ali s' ajêtamos, ponho a Zundap a trabalhar ôtra vez, vô p'a arrencar, é o assobes... Patinava e nada. Digo p' à minha Maria:

- Vai andando até alem àquela alturinha que já t' amontas lá. Vá qu' ê leve-a à mão.

Ora, foi um descanço. Lá na alturinha, montames-se, meti-l'e uma pr'mêra, pus-l' o punho ô fundo, até estralava... Dôs sapêros, qu' andavam lá nos ares a avoar, até fugiram com medo. E, em men's de nada, se 'tava ô pé daquelas entenas que lá 'tão, béque-me dos telefones ó nã sê quem.

Aí é qu' ê gostí... Vistas c'm' àquelas é má d' haver. Via-se Lagos e Vila Nova quái c'm' se 't'vessem logo ali. Aqueles cerros tôd's d'rêto à barraja e d'rêto a Al'zur, coisa linda... E p' ô lado da Fóia?... Lobêras, Pé d' Frio, Corte Delfêra, Cerro da Madrinha, via-se tudo, tudo, tudo...

E inda há ôtra coisa qu' ê gosto naquele cerro. É aquele correpito ali im cima daquelas pedras, qu' é uma coisa bonita de se ver.

Q'ondo vô lá, tenho semp'e a mania d' assubir lá im cima. Mái, desta vez, a coisa nã me corré lá munto bem. Inda fui uns dôs ó três degraus, mái, despôs, arrecuí. Os ferros 'tavam tôd's podridos, vi-me lá em traquetes que pensí qu' aquilo s' ia partir tudo.

- Nã, nã! Toca a fugir daqui, entes qu' isto dê má resultado...

Pensí, enq'onto dava um salto cá p'ra baxo, qu' ia-me espatarrando im cimba da minha Maria. Pobrezinha, até panhô medo.

Ela, 'tava a apreciar aquilo tanto qu' até se desqueceu qu' inda se tinha que abalar prê abaxo e decer o cerro todo. Q'ondo s' alembrô, punhana!, más um nada e dava-l'e ali uma coisa... Ê vi logo qu' ela já 'tava enrascada a pensar naquela ladêra até à estrada de Marmelete.

Volta-se p'ra mim e diz, c'm' quem nã quer a coisa:

- Eh'q, ê cá, agora, gostava era d' ir a pé, ali prê abaxo p'l' aquela v'reda qeu' ê usava a passar q'ondo vinha da missa e tinha pressa de chigar a casa. Q'ondo tu inda nã tinhas a b'cicleta. Em men's de nada ê 'tava nas Bicas. Calhando, inda pr'mêro que tu.

Ela pensa qu' ê sô parvo, más ê vi logo qu' o qu' ela qu'ria era, com a desculpa d' ir p'lo encurtadoiro, furtar-se a ir amontada na Famel...

'Pera aí qu' ê já te digo...

- Nã senhora. Viemos os dôs, vai-de os dôs. Ó 'tás com medo? Se tens medo, à ôtra vez venho ê cá sòzinho... Dôs bêbados nã se largam um ô ôtro, q'onto más a gente...

- 'Tá bem, homem, nã t' apequentes. Logo vô por ali nôt'a ocasião. Ê até gosto d' ir amontada na b'cicleta p'a panhar aquela araja fresquinha na cara...

E atão, despôs de se andar mái um coisinho ali à roda da gurita, abalamos caminho da minha Famel. E olhem qu' aquilo, p'ra baxo, foi um consolo... Puse-a a deslise, nã gastí nem um destão de gasolina até à estrada de Marmelete.

Inda se foi à fonte das Bicas, más aquilo 'tá na desgraça... Tudo escalavardado, tudo marafado, até me dé desgosto. Tanta vez qu' a gente b'bia ali umas sedes d' água q'ondo s' ia a Marmelete a pé e, agora, des qu' a água nem tampôco 'tá capaz...

Ê cá b'bi na méma. Olha, se me fazer mal à barriga e ma dar p' aí alguma sôltura, logo se vê...

Más uma palavra l'es vô ê d'zer. Venham dar uns passêos p'r cá e vã ô Cerro dos Picos que nã ficam repesos. Se trazerem uma morenda, comam-na lá, se nã trazerem, vã até Marmelete, ôs Gralhos ó ô Cor' d' Vale qu' há lá umas casas que fazem um dec'mer do melhor que pode ser e haver. É daqui...

E hoje nã l'es digo mái nada, qu' inda tenho qu' ir ali alimpar um rego p'a trazer a água do tãinque da Pedra da Zorra p'a umas bejoarias que tenho p' ali. É qu' o tempo já vai quente. E, inda esta semana, calhando, tenho que regar umas batatas d' olho de perdiz que samií ali no cantêro do mêo.

Dés l'e dê saúde.

12 maio 2006

Recantos da Vila: umas q'ontas portas e j'nelas

Na Vila há portas e j'nelas qu' até dá gosto...

Q'ondo tenho pôco que fazer - ó me falta a vontade disso - dá-me p'a ir ver coisas. Uma tarde destas, com'cí a andar p'la Vila, ô dés dará. As ruas, g'ande parte delas, sã bem munto estrêtas, nã se dá visto mái nada senã as paredes e o céu.

Inda andí de galga no ar um belo pôco a olhar p' ô céu, que 'tava bem azulinho dum lado e a f'car toldado do ôtro, mái, béque-me, comecí a sentir aqui uma moínha no cachaço e dí com-migo a olhar p' às portas e j'nelas da famila.

Quem me visse assim espècado, havera de d'zer qu' ê nã 'tava bom da cabeça e, d'zendo a verdade, inda hôve p'a lá uma m'lherzinha que se pôs munto embasbacada a olhar p'a mim, e nã s' aguentô:

- Mái o qu' é qu' o rai' do homem anda p'a li a fazer, senhor?!... Gab'-l'o gosto... a tirar retratos às paredes...

Ela qu'ria era meter conversa com-migo p'a saber o perquém daquilo. Más ê fiz que nã ôvi e lá fui andando. Qu' ê tamém nã me calhava 'tar-l'e a d'zer p'a qu' é os retratos eram...

E, despôs, nã fosse a minha Maria par'cer p' ali e f'car desconfiada de me ver a palear com ôtra. 'Tá bem qu' ê nã tinha medo nenhum disso, mecêas sabem bem qu' um homem é semp'e um homem, mái nã há nada com-m' à gente s' aprecatar e furtar-se a esses enredos, qu' elas, ás vezes, sã malinas...

E atão, a pr'mêra porta qu' encontrí foi esta:

Tem flores, tem rendas lindamente fêtas p'la dona e o fogarêro em frente, p' ô que ser preciso.

Tudo munto bem afêçoado, à manêra cá da gente.

'Tive um belo coisinho a oservar e achí bonito os vazinhos todos pôstos nos sês lugares, naquela armação, qu' é mái que certo, foi fêta de pr'pósito p' àquilo.

Fica na rua da cadêa.

E, bem perto dela, dí logo com esta, que tem que se l' e diga. Se qu'serem, dão alcançado, melhor do qu' ê cá, o qu' a pessoa qu'ria d'zer q'ondo pôs aquelas coisas todas ali.

Ora, repáirem bem. Cá p'ra mim, o que me vêo à cabeça foi isto e nã vejo ôtra manêra melhor de deslindar o caso:

. Uma tamiça dum lado ô ôt'o da porta:

- Nã se pode passar.

. Uma cana atravessada, mê dêtada:

- Nã se pode passar.

. Um pano preso à manita da porta com uma mola da rôpa:

- Nã vale a pena bater, que nã se pode passar...

Isto é a manêra c'm' ê cá olho p' àquilo, 'tá claro...

Mái, vomecêas podem ver a coisa dôtro jêto, 'tá bom de ver.

'Tava ê cá munto bem entretido a deslindar isto e a pensar se nã saria de caso haver más alguma porta ent'r'ssante, ó janela que fosse, sinto um empurrão p'as costas...

- Eh, parente, mái atão o qu' é que faz aí parado a olhar nã sê pr' ô quem?

- Eh'q, 'tava aqui a olhar p'a este entrôcho e achí isto bem caçado.

Disse, ê cá, p' ô parente Chico T'móito, do Barranco da C'ruja, que chigô até ô pé de mim, munto desapercebido, sem ê dar p'r nada.

- E, ô méme tempo, 'tava-me a dar cobiça d' ir andando p'r 'í más um pôco. É qu' ê pelo-me p'r ver estas coisas, parente...

- Olhe, atão, vamos os dôs qu' ê tamém acho graça a isso e gosto palear uns pôcachinhos consigo.

Respondé-me logo ele, fazendo assim o gesto de quem c'meça a andar.

Inda nã se tinha chigado bem ô canto da rua, vejo uma casa a ser fêta, já em bom estado. Mái uma coisa como deve de ser. Assim p' ô moderno, com pedra cá da nossa toda lisinha nas paredes, j'nelas rasgadas, ê sê cá...

Diz-me logo o parente T'móito:

- Des qu' é dum dôtor advogado que 'tá fazendo isto p'a montar aqui o cartóiro dele, mái nã sê quem é.

- Munto men's sê ê cá qu' inda nem tampôco sabia qu' isto 'tava aqui... Mái, isto vê-se logo qu' é gente de posses. Qualquer um nã podia com uma despesa destas. Só estas pedras q'onto nã custaram?!...

Respondi ê cá, inda ensampado a olhar p' àquela categoria de trabalho.

- Olhe, e 'tá aqui méme bem. Logo ô pé do Resisto, do Notáiro, do Tribunal, da Câmara... Oh, cai aqui tudo.

E o parente T'móito tinha r'zão. Aquilo 'tá ali m'eme ô queres...

Bom, andando e conversando, q'ondo dô p'r mim 'tava d' olhos pôstos nôt'a porta que tamém gostí de ver:

- Olhe que já se vêem pôcas assim...

Dig' ê cá.

- Olá!... Portas com gatêra? Oh, parente, disso tenho ê lá umas duas ó três... Se nã ser más.

Responde-m' ele um coisinho quái p' ô maniento.

- 'Tô a falar aqui na Vila, parente. E vê-se qu' é uma porta com muntos anos mái bem tratadinha. Olhe que nã é só a gatêra. Atã e aquelas travessas além em cima p'a dar ar à casa? Isto tamém é famila de teres... E op'niôsos.

Disse ê cá.

- Ê tamém sô op'niôso, teres é que nã tenho. Más olhe que gosto de ter as minhas coisinhas tudo bem apresentado...

- Parente Chico, nã l'e parêça mal o qu' ê disse, qu' ê sê que mecêa tem lá um arranjinho, uma coisa do melhor. E seja com saúde p'a se gozar daquilo p'r munto e munto tempo.

De manêras que, foi-se andando mái um pôco, inda se b'beu um copinho - e más ôtro p'a nã s' ir coxos - ali na Portela.

Nã sê se foi o mê parente que 'tava em fraqueza s' o qu' é que foi, aquilo subi-l'e logo à cabeça. Ia-se ali os dôs munto bem, dá uma topada na calçada, vejo jêtos dele se espaldêrar no mê do chão. A sorte foi qu' ele é munto safo e joga-se com as duas mãs ôs ferros desta j'nela.

- Calhô méme bem. Se nã me siguro aqui, já nã se via esta j'nela. E bem apresentada qu' ela 'tá...

Diz ele, munto l'gêro, c'm' quem nã quer a coisa, pensando qu' ê nã vi bem que, más um nada, e ele tinha andado de raboleta.

- Bem ó mal apresentada, s' ela calha a nã 'tar aí nesse sito, quem f'cava mal apresentado era vomecêa... Já vi bem, se t'vesse batido a àpèraja num chã destes, com-m' é que 'tava agora?

E pensí, mái nã disse:

- Ora, tinhas a fúiça toda esgateada...

E assim se passô a tarde, mal a gente dé p'r isso.

Num nadinha, 'tava-se a chigar ô Largo dos Chorõs. Inda dé tempo de se b'ber mái umas copadinhas lá no café entes da hora da carrêra.

E passem muntíss'mo de bem, até ôtro dia.