19 abril 2008

Vô-me andar a Via Algarviana duma ponta à ôtra...

Traçado da Via Algarviana, uma Grande Rota pelo interior serrano algarvio A Via Algarviana passa p'r Monchique e Marmelete. Desqueceram-se foi do Alferce...

Inda 'tão lembrados d' ê cá, aqui há uns tempos, l'es falar na Via Algarviana? Põs antão chigô a altura dela ser estreada... E já que dí o nome, faço tenção d' abalar com eles, aí prê afora, sigunda-fêra que vem.

Digo bem: faço tenção d' abalar. Agora de chigar ô fim, iss' é que já sará d' adregue... Catorze dias a andar à pata d' infiada e uma lonjura de mái de sessenta léguas nã é brincadêra nenhuma... Mái, abala-se e logo se vê o qu' é qu' a coisa vai dar.

Se nã haver azar, no últ'mo d' Abril pisa-se chão cá de Monchique. Abala-se de Silves, já com nove dias de caminho, vem-se ali prê adiante d'rêto à Foz do Barrêro, assobe-se até à Picota e, im menes de nada, 'tá-se na Vila. Drome-se essa nôte cá e, Dia de Maio de manhã, lá se vai, d'rêto à Fóia, caminho de Marmelete.

Só o que me dá maior pàxão é, entes de s' assubir à Picota, nã s' arrodear um coisinho e ir-se passar tamém ô Alferce. Era uma coisa bem pensada qu' aquilo é um Povo que bem mor'cia isso. Mái atão... os homens é que p'a lá fazeram o mapa e, calhando, desqueceram-se. Ó nã saberiam o caminho...

De manêras que, apr'evêto p'a me despedir de vomecêas. Seja p'r um dia ó p'r quinze, em chigando, logo digo alguma coisa. Ad'virtam-se p'r cá ô bem fêto, qu' ele, agora, vai haver p' aí festas qu' até berra...

Fiquem-se com Dés e até qu' a gente se veja.

15 abril 2008

A Igreja de Nossa Senhora da Encarnação de Marmelete

Igreja de Nossa Senhora da Encarnação de Marmelete
Igreja de Nossa Senhora da Encarnação de Marmelete.

Ontordia, fui ô interro dum amigo, im companha do mê compadre Jôquim do Barranco, e, aquilo, nã sê premode quem, inrolô ali um coisinho e teve-se que 'tar à espera um belo pôco.

De manêras que, c'mo assunto p' à conversa era pôco, - já se 'tinha falado tudo a respêto do pobrezinho qu' ia ser interrado - pus-me a olhar bem p' à Igreja de Marmelete qu' é um sito adonde tenho ido toda a vida désna que narci, mái uma pessoa nem semp'e toma sintido nas coisas.

Logo do lado de fora, olhí e mái qu' olhí... O mê compad'e Jôquim estranhando de me ver assim a olhar tanto, meté-se, logo, com-migo:

- Mái o qu' é que mecêa 'tá p' aí a olhar dessa manêra?... Quem veja isso e nã saiba até cuda que vomecêa inda nunca aqui tinha 'tado...

- 'Tô a olhar ali p'a uma coisa que mecêa, calhando, inda nunca repàirô...

- Olá!... Désna de sempre qu' aqui venho, lá cuda que me passa alguma coisa qu' ê nã tenha já visto...

- Atã diga-me lá o jêto daquela parede ali, até à torre, vir numa prumada e, despôs, da torre p'ra cá, incolhe coisa dum metro ó más, até à porta?...

- Ah, isso nã sê... Semp'e vi aquilo assim, mái lá o jêto disso nã l'e sê d'zer. Vá prècurar a quem na fez...

- Pôs é aí que 'tá o caso... É que, calhando, esta parte d' àlém da torre até aqui à porta nã foi fêta na méma altura da ôtra.

Igreja de Nossa Senhora da Encarnação de Marmelete
Digam o que d'zerem, o artista que fez isto inda trabalhô munto bem...

- Que jêto não?... Lá 'tá vomecêa semp'e com as sus tiradas... Aquilo, p'ra mim, ó foi o pedrêro que nã tem nada im l'e ter faltado a cal e a arêa ó ôtra coisa quasequer...

- Ah, sã as minhas tiradas... Vomecêa - sem ofensa!... - é que nã sabe o que 'tá a d'zer...

- Sabe mecêa...

- Atã veja s' arrenja manêra de ler o livro "Subsídios para a Monografia de Monchique" qu' um homem cá de Monchique ch'mado Gascon escreveu inda entes d' a gente os dôs nascer, que logo vê.

- A minha reforma nã me dá p'a nada, q'onto mái p'a comprar livros...

- Nã tem precisão do comprar. Vá ali à Biblioteca e peça um imprestado, c'm' ê cá fiz... Ó quem sabe lá se na Junta ó na Câm'bra tamém nã têm algum que mecêa possa ver...

- Nã precisa. Já que vomecêa pedi um imprestado à Biblioteca, conte lá o qu' é que diz lá...

- Atã, o que diz. O que diz é que, calhando, aquela parte ali da torre p'ra cá foi fêta já uns belos anos despôs do resto da igreja 'tar acabado e im uso.

- Isso há-de ter sido a famila aqui de Marmelete que foi àmentando e já nã cabiam tôdes lá drento...

Igreja de Nossa Senhora da Encarnação de Marmelete
Estes ladrilhos com as Tábuas da Lê sã d' agora. Mái tamém sã bonitos...

- É mái que certo... Nã vê que, nôtres tempes, vinha tudo à missa. Agora é que nem das três partes, uma, pôem cá os pés... Vá lá nestas ocasiõs de funarás e coisas assim, mài, à missa, à missa, só já os velhos assim c'm' à gente e as nossas m'lheres...

- Atã e o qu' é qu' esse tal Gascão diz lá más, no livro dele?

- Nã é Gascão, compadre jôquim, é Gascon. José António Guerreiro Gascon. Nã sê s' a famila dele era estrangêra s' o qu' é que era, más o nome era assim. E, coitado, já morreu vai p'a sessenta anos. Foi im 1950.

- E diz lá mái alguma coisa de jêto ó não?...

- Atã nã diz?!... Fala lá de tudo a respêto aqui do nosso concelho. Coisas d' antigamente, 't'a bom de ver...

'Tava-se munto bem intretidos nesta conversa, desatô tudo a antrar p' à igreja, t'vemos que se calar e ir atrás dos ôtres. E, aí, até repàirí qu' o mê compadre já nã foi p' ô mémo sito adonde ele usava a f'car sempre, logo ali p' trás da porta. Andô mái um coisinho e assantô-se uns quatro ó cinco bancos más à frente.

Ê cá estranhí, mái p'a nã me fazer rogado, vô-me atrás dele e assanto-me no mémo banco - qu' ele, p'a me dar lugar, até teve que se chigar mái p' ô mêo e inda quái qu' impurrô umas m'lherzinhas que já ali 'tavam assantadas na banda de lá.

O senhor Prior lá se pôs a d'zer a missa, a fazer aquelas cerimóinas todas p'a inc'mendar o pobrezinho do defunto e isso tudo, e o mê compadre mái que olhava p'a tôd' ô lado. P' ôs altares tôdes, p' às paredes, p' ô telhado, p' aqui, pr' ali...

Igreja de Nossa Senhora da Encarnação de Marmelete
Chigaram a haver quatro capelas destas. Duas de cada lado.

Logo, nã intendí o qu' é qu' ele 'tava a fazer. Só dali a um belo pôco é que alcançí qu' o homem, com a conversa que se tinha tido lá na rua, f'co todo crusidoso e, atão, vá de bispar a igreja toda duma ponta à ôtra, lá p' drento.

Aquilo passô-se.

Tã penas o interro acabô, abalamos os dôs e foi-se andando ali prêacima. Qu' o interro já foi p' ô cemitério novo, uma coisa munto moderna e munto jêtosa qu' a Junta fez lá, logo prebaxinho do ôtro.

Vinha-se a chigar ô adro, o mê compadre dá-l'e um derrepente, olha p' à porta da igreja e salta com-migo:

- Ó compad'e Refóias, vomecêa já vi bem c'm' à ingreja 'tá d'f'rente lá p' drento? E f'cô bonita, home... Com aqueles ladrilhos tôdes tã bem pintadinhos nas paredes...

- Pôs...

- ...'té pintaram lá as Tábuas la Lê e tudo, com os Dez Mandamentos...

- Tem r'zão. Aquilo, agora, 'tá tudo qu' até dá gosto. 'Tá bem qu' aquilo, anos atrás, tinha cinco altares e, agora, só tem três, mái, calhando, a coisa teve que ser assim... Pro jêto, com os sismos e ôtras coisas más, ela já foi arrenjada munta vez e, p' à sigurar d' em pé, foi sendo mudada à medida do que foi preciso...

- Agora m' alembro... Inda ele nã há muntos anos, tamém tinha um púlpito. Aquilo é que era umas prègaçõs qu' alguns padres lá faziam... Só se via era as m'lherzinhas a alimparem a água dos olhos com o lencinho...

- Atã e nã 'tá alembrado do côro?

Pia Baptismal da Igreja de Nossa Senhora da Encarnação de Marmelete
Désna d' há tantos anos, q'ontos é que nã tariam sido baptizados aqui?...

- Ora se 'tô... Eram im madêra, logo ali p'r cimba da porta dos homens. Sim, qu' a das m'lheres era a que vinha lá do lado da sacr'stia.

- Pôs era... E tamém tinha dôs confessionáiros, más ó menes a mêo, um de cada lado, mái c'mo eram de madêra, tamém se foram...

- Vá lá que a Pia Baptismal é de pedra e nã se gasta...

- E bonita qu' ela é...

- Inda m' alembra de ser lá baptizado, veja lá...

- C'm' é que s' alembra duma coisa dessas?... Ê cá nã m' alembro do mê bàtizo.

- Atã nã vê qu' ê fui criado à manadia, a minha mãe nunca ligô a isso, só me baptizí já era crecido... Olhe, foi q'ondo a gente andô os dôs na escola-paga e na catequese...

- Ai, é verdade... Agora m' alembra... Inda mecêa falô em ê cá ser o sê padrinho, mái o padre nã dêxô.

- Pôs foi. C'm' ê cá sô um coisinho mái velho, ele des que, despôs, o afilhado nã tinha respêto p'r o padrinho...

- E lá nisso teve r'zão. Que vomecêa nunca se dá p'r aquilo qu' ê cá l'e digo. Olha que belo afilhado qu' ê arrenjava... Mái, nã cude, q'ondo mecêa se portasse mal, logo via c'm' é qu' elas l' ardiam... Õvi-as, e das boas!...

- Já mecêa 'tá no gozo... Cale-se p' aí, que tomara mecêa dar conta de si... q'onto más dos ôtres... Tem munto que falar...

E mudô de conversa, p' à igreja, ôtra vez.

- Olhe lá, compad'e Refóias, ele inda me f'cô aqui uma coisa qu' ê cá nã intendí munto bem. Olhí lá p' ô altar-mor, lá im cimba, e 'tava lá uns numbres, béque-me uns uns e uns setes e um cinco... Nã f'quí a saber bem que data era aquela...

Igreja de Nossa Senhora da Encarnação de Marmelete
Ele há quem diga qu' o que 'tá ali é "1751". Sará?...

- D'zer a verdade, ê cá tamém nã 'tô munto certo naquilo. Mái o tal Gascon que escrevé o livro, que pro jêto era um homem munto sabido nestas coisas e, tamém, des que munto amigo de tudo cá do nosso concelho, pôs lá qu' aquilo era "1751", um coisinho entes de vir o tal sismo qu' arrasô com Portugal quái todo.

- S' ele diz, é que lá sabe... Mái, cá p'ra mim, o último númere dá-me mái jêto a ser um sete do qu' um um. Veja bem qu' ele é tal e qual o sigundo.

- Calhando, foi coisa d' algum que pintô aquilo alguma vez e s' atribuíu...

- Nã teve nada im ser, sa senhora.

E p'r 'quí me fico.

Querendem ver mái um retrato ó dôs da Igreja de Marmelete, acalquem aqui na Galeria da Igreja de Marmelete, fazendem favor. E, já agora, vejam tamém o qu' o tal senhor José António Guerreiro Gascon diz de Marmelete, no sê livro "Subsídios para a Monografia de Monchique", que toda a famila de cá de Monchique havera de ler. E os de fora, tamém.

Até um destes dias.

Fiquem-se com Dés.

02 abril 2008

Uma Estila cá à nossa moda

Procissão Real de Domingo de Páscoa - Monchique
As adegas im Monchique eram assim. Agora... têm que ter ôtres preparos...

Uma ocasião, 'tava o mê parente Zé Caçapo - todos o conhêcem é p'r o "Verruma"... - a estilar lá na adega dele, um casôto todo de taipa, telha vã e uma cheminé qu' ele p'a lá ingeròcô com uma lata velha vinda nã sê d' adonde...

P'a nã se ver lá tã sòzinho, - o homem nã tinha vagar nenhum, com a terra quái toda p'r cavar, já im mêio de Março... atão, fazia três caldêradas p'r dia. Aquilo era desencabeçar uma e carregar logo ôtra d' infiada, dia e nôte... - convinda-me a mim, p'a ir até lá, o Sabastião Caça-Ratos, o parente Chico da Varja, o mê compadre Jôquim do Barranco e inda béque-me mái uns dôs ó três qu' ê cá, agora, nem m' alembra bem. Ah, o ti Manel Mansinho tamém 'tava...

Inda bem ele nã era lusco-fusco, ajunta-se logo aquela matula toda lá, - isto num dia de Sáb'do - tôdes fêtinhos p' ô laré e danados p'a bober umas boas copadas de madronho. C'm' des qu' aquilo "inq'onto 'tá na êra nã dá quebra", o ti Zé Caçapo, que sabia fazer da boa, só p'a 'tar intretido com os amigos, nã s' emportava qu' a gente l'e bobesse fosse a que fosse.

De manêras que, entretemos-se lá um belo pôco - ele foi mái foi a nôte quái toda... - e o más ingraçado foi que o mê compad'e Jôquim do Barranco, em se panhando um coisinho escorvado, desatô a dar um insinamento ô Chico da Varja de c'm' é que faz o madronho numa estila.

E nã é qu' o homem nã 't'vesse prático im fazer tal coisa, que toda a vida foi estilador, mái com os porrêtes qu' o ti Zé l' impurrava, d' ora im q'onto, - mòrmente q'ondo, sem ele ver, l' inchia o copo da que 'tava a correr inda quentinha... - já s' ingasgava bem munto...

E o Chico da Varja, tamém já um coisinho impeçado, 'tava todo emprensado naquilo, nã cudem...:

Procissão Real de Domingo de Páscoa - Monchique
Esta caldêra já é mái p' ô moderno. As más antigas sã mái baxas e b'judas. Premode isso, é d' adregueimborracharem mái vezes...

- Nã vê, amigo Chico, o homem, agora, p'a c'meçar ôtra estilação, tem de carregar a caldêra.

- Às costas?...

- Nã!... Carregar é incher o tacho de massa... Nã vê, pega-se no cácere, tira-se a massa que 'tá drento da vasilha, põe-se-a naquele balde e despeja-se-a p' à caldêra.

- Atã e tem preciso de l'e pôr assim tanta água à mastura?... Aquela cânt'ro leva bem uns vinte litros!...

- Qual água?

- Ó parente Chico, - disse-l' ê cá - aquilo nã é água. Aquilo é a frôxa...

- Frôxa?!... O qu' é isso, mom?

O parente Chico da Varja é de cá de Monchique mái já há munt' ô tempo que foi lá p'ra baxo p' à Varja do Farelo e, atão, até já panhô este estilo de falar daquela famila lá do Algarve. E tamém nã sabe nada desta coisa da estila.

- A frôxa é que corre ô fim duma caldêrada, já com pôca agraduação, e, atão, aparta-se p'a ôtro cânt'ro. É o cânt'ro da frôxa. E, agora, despeja-se p' além p'a l' apr'vêtar um coisinho d' álco qu' ela inda tem.

Diz o ti Zé Caçapo, munto cão, semp'e a sovinar:

- Isto, agora, nã vês Chico?, é só pegar aqui num colhêrão e mexer-se, tal e qual c'm' quem 'tá a fazer papas...

E puxa dum sarrafo e vá de mexer a massa p' à masturar bem com a frôxa. É o que se usa a fazer p'r' à massa nã s' agarrar ô fundo e quem-mar-se.

-Agora, é pôr o cânt'ro da frôxa ôtra vez àlém à bica e fazer fogo na forneca p' à massa frever. Mái, com conta... Nã vá a caldêra se quem-mar!...

- Atã e nã l'e põe o cachimbo im cimba?

- Agora, inda não... Só s' incabeça em ela desatando a frever... 'Péra aí que já vês...

Procissão Real de Domingo de Páscoa - Monchique
P'a saber a agraduação, pega-se na bomba e no canudo e pesa-se a do cânt'ro da forte...

Aquilo foi um foguete até ela desatar a frever... A forneca 'tava inda bem quente da ôtra caldêrada e ele fez-l'e ali um belo foguinho com lenha de madronhêro e sobro, nem l'e dé tempo a fazer um cigarrinho d' onça, - daquelas "Duque" qu' ele usava e papel de mortalha "Zig-Zag" - e fumá-lo descansado ali incostado ô pilão, panhando o quentinho que vinha da boca da fornilha...

O Sabastião Caça-Ratos, assantado num moncho que p' ali 'tava, com as mãs agarradas ô cachaço e os olhos fechados, que só os abria de q'ondo im vez, é que l'e dé de vaia:

- Im vez de dar um calcesinho à gente, pôs-se a fazer o cigarro e, agora, nã vê qu' a caldêra já 'tá a frever?!... Acuda a isso senã inda perde aí uma preção d' aguardente!...

E, d'zer a verdade, aquilo, em ela desatando a frever, calha bem é incabeçá-la logo, dêxar correr umas pingas p' ô cânt'ro da frôxa e, tã penas ela afie, apartá-la p' ô da forte.

Foi o qu' o parente Zé Caçapo fez, inq'onto, com a pressa, dêxô o cigarrinho, qu' ele mal tinha acabado d' inrolar e dado uma chupadela ó duas, im cimba da forneca ardendo sòzinho, até qu' o dono, desapercebido, l' incalhô e o fez cair p' ô chão e o pisô com aquelas gradessíss'mas botas de sola de pneu, que tinha mandado fazer p'r medida à do primo Ináiço Cego, entes de começar na apanha do madronho.

De manêras qu' o homem p' ali fez esse governo todo e, nã teve tempo de mái nada qu' ela, assim afiô e teve qu' a apartar. Despôs, foi só ir controlando o fogo qu' ele, uma vez p'r ôtra, alava munto e nã fosse ela l'e f'car àsp'ra de más e com má gosto...

- Ó Manel Mansinho, - o ti Zé semp'e foi assim, trata tôdes p'r tu... - joga lá aí umas gotas d' água p'ra cimba das brasas qu' ele já 'tá ali a dêtar um torno de fumo que nem vejo o fio da aguardente...

Mintira dele qu' aquilo só saía um coisinho fumo que nã era nada, qu' ê bem vi, e a bica corria mái ó menes c'm' deve de ser, más o homem era todo caganêroso com aquilo... Tinha a mania qu' a dele havera de ser semp'e a melhor de todas...

Procissão Real de Domingo de Páscoa - Monchique
P' ôs que tenham coraja, pega-se no canudo e enche-se-o da quente...

E, nã tardô nada, já ele 'tava a meter a varinha drento do cânt'ro a ver q'ontos litros é que já l'a 'tariam. Ora aquilo nem havia uma hora qu' ela tinha afiado...

- Já quer o cânt'ro mêo, não?... Nã vê qu' isso nã tem inda mái do qu' uns cinco litros...

- Nem isso, q'onto más...

- Ai nã tem cinco litros... É o que se vai ver... Ê qu'ria já era uns dez...

- Isso era preciso ela render munto, munto bem... E méme assim... nã sê, nã sê...

Ele mete-l'e a vara até ô fundo do cânt'ro, pux' à p'ra cima munto de repente, põe-se a olhar...

- Ê nã l'es disse?!... Olhem bem p'ra isto!... Nã tem bem os dez, mái tapa os nove... Vocêas inda têm que narcer ôtra vez p'a darem palpites ô pè cá do velho Zé Caçapo!...

Diz o Sabastião:

- Isso há-de ser mintira sua, mái, já qu' ela 'tá a render tã bem, nã fazia nada demás se desse aí uma rodadinha à gente p'a se a provar...

- Tens r'zão, Sabastião, o homem tem que dar aquilo a provar à gente tôdes...

- Ê cá só bebo se ser daquela àlém da garrafinha. A do cânt'ro 'tá inda munto agraduada... E quente...

A ele tamém l'e calhava melhor dar da da garrafa premode a gradução, e foi o que fez. E 'tava boa. Inda hoje, tenho aquele gostinho aqui na boca... Já é má de se fazer mat'rial daquele, hoje im dia...

Passado um belo pôco, diz o Sabastião, semp'e com o olho na garrafa:

- Atã, ti Zé, nã na pesa? Olhe qu' aquilo já há-de ir do mê do cânt'ro p'ra cimba... Ó nã tem bomba e usa só a batê-la no copo e ver as contas que faz? S' ê cá sabesse, tinha trazido a minha, mái nã m' alembrí e dêxí-a lé im casa...

Procissão Real de Domingo de Páscoa - Monchique
...despeja-se um calcesinho e...

- Tenho bomba, sim!... Nã tenho preciso da tua... Esta inda foi uma qu' o mê pai usava e chigô a servir muntas vezes lá na adega dos tês avózes. Nã t' alembras, Refóias?...

- Alembro-me, sa senhora. Munto bem, até...

Alembrava-me tanto c'm' coisíssema nenhuma, mái p' ô velho "Verruma" f'car contente e nã se furtar a dar mái uns calcesinhos à gente d' ora im q'onto, dí-l'e os àméns... E ele lá foi pesá-la.

Pegô na solipa, meté-l'e o canudo na racha, inché-o bem no fundo do cânt'ro, pôs-l'e a bomba drento, olhô, olhô... nã dava visto munto bem qu' a luz era fraca. Olhô ôtra vez, ele bem que piscava os olhos, mái a bomba, aquilo tem uns numbres munto piquenalhos, o pobrezinho nem p'r nada que panhava dali fosse o que fosse.

- Ó Refóias, impresta-me lá aí os tês óc'les, qu' ê nã vejo isto bem...

Ê cá, com medo, nã fosse ele mos partir, más a más que, com as copadas que tinha bobido, havera de 'tar já um coisinho espingardado, fiz-l'e a franqueza de ser ê a ver.

- Ó parente Zé, most'e lá isso qu' ê dig'-l'e já qóntos graus é qu' ela tem... É que mecêa nã dá visto nada com estas lentes qu' ê tenho agora. Isto sã munto fortes!...

- Atã, vê lá...

Tapava inda bem os vinte sês, mês belos amigos. 'Tava a render qu' era um consolo... Más ê cá, p'a judear com ele, disse-l'e:

- Olhe, 'tá de vinte e um. Tem qu' a desapartar p' à frôxa, entes que seja tarde...

Ele até arregalô os olhos...

- Que jêto?!... Tens que 'tar a ver isso mal... Inda o cânt'ro 'tá p' aí só mêo... Atã, isso assim, rendia-me uns dez ó doze litros, se tanto... Olha lá bem ôtra vez!...

Ê cá fiz-me desapercebido, peguí no canudo:

- Dêxe-me lá ver isso nas minhas mãs, que semp'e vejo melhor. Mecêa só 'tá pr' aí a tremelicar...

Procissão Real de Domingo de Páscoa - Monchique
...e vai p'ra baxo duma assentada. Aquilo é que dá cá uma reacção...

- Atã, vá lá. Pega-l'e aqui no em par do cânt'ro qu' é p'a nã se derramar p' ô chão qu' ê encho o canudo ôtra vez. E encheu. Ê cá fiz que 'tava a ver bem a que traço ela chigava, enrolí um coisinho, voltí a olhar...

- Tó, raio!... Esta agora já 'tá um coisinho mái fortinha... Tapa os vinte sês, parente...

Ele foi c'm' quem l'e dé uma sovinadela no cu - com l'cença da palavra. Assim dé um salto, abri os braços, com aquelas gradessíssemas mãs chêas de calos, e vem d'rêto a mim, fazendo que 'tava marafado, mái todo contente:

- Ah, cã danado!... 'Tavas a antrar com-migo... Ê bem me par'cia que nã podia ser!... Isto é caldêrada p'a render bem... Anda, anda... inda dá mái dos vinte litros... Pósto contigo qu' ela enche o cânt'ro!...

- Ah, ê cá nã pósto que perco... Pósto é que vomecêa, agora, às tenças disso, é homem p'a dar as provas à gente. Más é aí da do cânt'ro!...

- Nã dô nada dâ do cânt'ro!... Agora tôdes têm que bober más é uma canudada da que 'tá a correr aqui na bica... E c'meça já ali p'r o Sabastião...

- Parente, - disse-l'e ê cá - mái nã encha munto o canudo... Nã quêra pôr esta famila toda a dromir aqui até amanhã, cada um dêtado p'r sê canto... E mecêa tamém tem qu' olhar aí p'r a caldêra...

- Atão, im vistas disso, bebe-se, na méma, da da bica, más ê cá despejo do canudo p'a um copinho mái pequeno...

- E já é demás... Nã se desqueça qu' ela 'tá a correr a vinte sês... Ó vá qu' agora já 'teja nos vinte cinco. Que nã 'tá...

- Sabastião!... Ó Sabastião!... Toma lá...

O Sabastião, c'mo era uso dele, 'tava ali a caçar ratos, assantado no tal moncho e incostado a uma dorna, acordô assim mê insampado, mái disse logo:

- Dê cá, dê cá...

E bebé o calcesinho, todo graganêro. Nisto, assim mê imbaçado, dá-l'e um derrepente:

Procissão Real de Domingo de Páscoa - Monchique
Chega a um ponto qu' um homem tamém tem de comer uma buchazinha...

- Mái atão, isto é da do canudo... Inda 'tá quente e tudo!... Querem arrumar com-migo?!...

- É, sim, homem... Mái tôdes bebem, nã és só tu... Queres ver?

E vá ôtro copinho p'a cada um.

Uns bebiam quái a medo, ôtres, c'm' ê cá, já se 'tava p'r tudo, era p'ra baxo e seja o que Dés qu'ser... Mái qu' ela sabia bem, lá isso sabia.

Nã sê se mecêas sabem, mái aquela assim, munto agraduada e morninha, bebe-se do melhor. É macia e escorre p'las goélas abaxo qu' até estrala... O pior é, logo a seguir, em ela resolvendo abalar prê acima e chigar até à cabeça...

- Atã, e nã se come nada? - Diz o Chico da Varja.

- Já se come, péra aí. Tenho aqui uns pedaços de carne magra do mê pórco p' à gente assar ali na forneca, mái só despôs da desapartar p' à frôxa... Qu' é p'a nã se mexer no fogo, agora, que descontrolava logo isto tudo...

- É qu' isto, só beber, só beber, um homem inda amajola pr' aí...

O que l'es sê d'azer é qu' aquilo foi uns trabalhos p' à gente ver a carninha assada. A caldêrada rendeu uma coisa p'r demás, enché o cânt'ro e más que fosse, já eram bem umas onze da nôte e a gente a mastigar im seco... Mái, despôs, atão, foi c'mer carnaja até mái não...

E assim se foi passando a nôte e dando companha o parente Zé Caçapo, inq'onto a frôxa corré toda.

- Bom, vamos lá a ver s' isto inda é frôxa ó s' o que 'tá a correr só já é água...

- O qu' é que mecêa diz?

- Vô-me quem-mar um copinho dela im cimba da cabeça a ver s' inda arde ó se já nã tem álco nenhum...

- Ah, pôs, pôs, p'a desencabeçar e l'e tirar as borras...

E lá fez um enrolo com um pedaço de papel, tiçô-l'e fogo, despejô um copinho da que 'tava a correr p' ô cânt'ro im cimba da cabeça da caldêra e pôs o fogo p'r baxo.

- Olha, inda alô um coisinho... Dêxo-a correr mái um pôcachinho e, despôs, arredondo a caldêrada.

- Pôs... Atã isso já nã tem aí força nenhuma que vá nem venha...

Procissão Real de Domingo de Páscoa - Monchique
Ô fim, quem-ma-se um copinho da frôxa na cabeça da caldêra. S' arder, inda tem força, se nã arder, acabô-se a caldêrada...

Passados nem cinco minutos, desencabeçô a caldêra, lavô-l'e o cachimbo, tirô-l'e as borras, limpô o tacho e disse p' à gente:

- Mês amigos... Era p'a fazer já ôtra d' infiada, mái nã 'tô p'ra isso, vamos más é incostar pr' aí um coisinho e, na manhã, logo a carrego ôtra vez e pronto...

- E faz vomecêa senã bem...

Disse-l'e ê cá, já com os olhos tôdes piscos e dejando de m' ac'modar p' ali num canto qualquer, nem que fosse só imbrulhado numas sacas qu' ê 'tava a ver ali drento duma canastra, p' trás duma pipa já sem madronho nenhum.

- Mái atão, e vô pôr esta famila toda na rua, a umas horas destas?...

- Que jêto?!... Isto fica tudo aqui a dromir... Nã vê c'm' eles 'tão? E nã há frio que l'es pegue...

- D'zer a verdade, com o que já boberam e o calorinho da forneca...

- Nã achas bem, Sabastião?

- Dê cá, dê cá...

Diz logo o Sabastião, méme d' olhos fechados, acarrado num sono dromente, cudando qu' era mái um copinho dela...

E até um dia destes, mái alembrem-se bem qu' isto é tudo mintira e os retratos sã do século passado. Hoje im dia, já ninguém faz aguardente assim, senã vêm os da ASAE, levam-l'e tudo e, inda p'r cima, pregam-l'e com uma murta qu' eles nunca mái s' alevantam.

Premode isso, têm que se legalizar e ter a adega com os preparos todos qu' eles enxigem. E, méme assim, des que só podem fazer trinta litros cada um, p' ô gasto da casa... P'a vender alguma, a coisa tem mái que se l'e diga. Mái, méme assim, já há uns três ó quatro que 'tão legás...

Querendem ver mái três ó quatro retratos da estila, acalquem aqui na Galeria da Estila, fazendem favor.

Tenham munta saúde e bebam-l'e uns porretes de q'ondo im vez... Mái com conta... Olhem a Brigada...

Fiquem-se com Dés.