29 janeiro 2007

Coisas de Morteporque - 1ª pagela

Uma bucha de coiratos e cachola Inq'onto a assadura nã 'tava pronta, c'mia-se uma bucha de cachola e coirat's.

Vô-l'es falar dum c'stume qu' é do mái antigo e emportante que se tem p'r cá. Mái tamém l'es digo qu' é bem munto descontrafêto que faço tal coisa. E o perquem dexplic'-l'e ê cá já, qu' é coisa que nã gosto é de vacas incoiradas...

Toda a vida, a famila cá da serra usô a matar um p'rquinho p' ô gasto da casa. Era, quái sempre, um cevanito que levava um ano bem medido a ingordar com aquilo que s' apurava na fazenda e mái umas coisalhas.

Olhem, o bicho, nã sendo de má-boca, c'mia de tudo. E em sendo de má-boca ajuntava-se com um que c'messe de tudo, nã se l'e dava mái nada a nã ser o qu' ele nã gostava e, im menes de nada, ele desatava a c'mer de tudo.

Désna de rama de fava às lavaduras, logo no prencíp'o, das amêxas ó peros às abób'ras, lá p' às bandas do V'rão, e das batatas-doces cozidas e esmigalhadas com farelos até à lãinda e milho, já no tarde, q'ond' ele já 'tava de mêas-carnes p'ra diante, tudo servia p' ô bicho pôr peso e dar carne boa e gostosa. E ôt'as coisas que nã adianta 'tar aqui a alomear.

E, em chigando o mês da Festa, ó ali a seguir ô Ano Bom, marcava-se um sáb'do que desse boa matação, convindava-se a famila e amig's, e fazia-se a morteporque. Calhando, a melhor festa que se tinha im tod' ô ano. Calhando não, era mái que certo...

Presuntos para salgarFolha de toucinho No sigundo dia, já o pórco 'tá desmanchado.

Pôs agora, mês amig's, se qu'rerem matar um pórco - e quem diz um pórco, diz ôt' bicho, qualquer qu' ele seja - têm qu' o levar vivo ô matadoiro... Arrenjem uma camineta p'a carregar gado vivo e levem-no a Lòlé. Mái nã se desqueçam de marcar a consulta com tempo que semp'e sã uns sassenta quilóm'tr's ó más e, se nã terem marcação, voltam p'a trás...

Despôs deles o matarem lá - im condiçõs munto mái ruins do qu' a gente sabe fazer aqui, qu' até o deventre l' arrebentam, as más das vezes - arrenjem ôtra camineta p'a carregar carne, daquelas figoríf'cas, que nã pode vir dôtra manêra p'r 'í afora. E paguem a conta qu' eles l' apresentarem, que, com mintira e tudo, vai-se logo o valor do pórco quái todo...

E, atão, o qu' é qu' a famila tem que fazer? O méme que fazia, nôt's tempos. É proibido, mái matam na méma im casa c'm' se nã fosse nada... E vai tudo correndo assim, neste fingemento, até que algum pague p'r os ôt's tôd's. Atã, nã é?

Vejam lá bem:

Os políticos fazeram a lê e agora fazem de conta que nã sabem de nada e nã têm nada a ver com o assunto.

Eles, a guarda, andam p'r 'í, mái fazem de conta que nã ôvem os pórcos gornir q'ondo os 'tã a matar. Senã tinha qu' ir lá adonde se 'tá fazer tal serviço, t'má conta daquilo tudo e murtar a famila.

Esses dos tribuná's e do estado tamém 'tã fartos de saber disso tudo e, parte deles, des que tamém fazem c'm' os ôtr's e vã a morteporques e tudo.

E s' a gente fosse falar aqui da estila de madronho e ôtras coisas má's, é tudo a méma desgraça.

Olha que esta, han?!.. É qu' uma pessoa, parte das vezes, nem tã pôco sabe o qu' é qu' há-de fazer...

Bom, mái esta conversa toda p'a d'zer qu' aqui na serra inda se fazem morteporques, seja ele proibido ó não. É o qu' ê tenho ôvisto p' aí d'zer... qu' ê cá nã sê nada disso...

E, atã, c'm' nã sê nada disso, vô-l'es contar só um coisinho duma morteporque qu' ê cá e a minha Maria se foi uma vez - nã foi no Sáb'do e D'mingo passados, foi já há uma pr'çada d' anos, q'ondo inda nã havia esta lê, 'tã a comprender?... Olhem que nã foi no Sáb'do e D'mingo passados... Mái se nã qu'rerem crer, isso com vomecêas...

De manêras que, no sigundo dia, já o pórco 'tá desmanchado, as m'lheres fazem os mólhes e as morcelas. Pr'mêro, os mólhes, despôs, as morcelas e morcelas de farinha.

Carne de assaduraAssadura E há semp' uns amigos bons que nã s' emportam de fazer bem ôs ôtr's...

Mái, inq'onto isso, há semp' um amigo bom ó dôs, com orde dos donos da casa, 'tá bom de ver, que se resolvem a acender o fogo e assar uns belos pedaços de carne magra p'a se c'mer uma assadura. Que tanto se pode c'mer logo im cimba dum pedaço de pão, assim que se tira das brasas, c'm' migada im pedacinhos p'a drento dum prato, com salsa, azête e alhos.

Nesse tal D'mingo - d' há muntos anos... - assim se deu. Puseram uma mêzinha na rua, pão coiratos, zêtonas e cachola que sobrô de Sáb'do - 'tava tã boa qu' até se lembiam tôd's... - e uma garrafinha de vinho, mái p' a enfêtar qu' ôtra coisa, im cimba da mesa.

Sim, qu' o amigo Tóino Arraúl, assim c'm' quem nã quer a coisa, apresenta-se com um garrafanito de plástico de cinco litros e acaçapa-o ali à ponta da mesa sem d'zer nada a ninguém. Ora, f'cô logo tudo de pulga na orelha a olharem p' àquilo, que lá drento 'tava uma coisa assim pôco mái que cor-de-rosa.

Diz logo o Chico Arvela, que nã é moço de conter:

- Atão, foste ô pitrol? Nã tens elecsidade lá im casa?... Ó isso é alguma coisa que se beba?...

- Um belo pitrolêro me saíste tu, cã danado... 'Tás semp' a fazer pôrra, tamém agora nã no há-des provar que te barimbas!...

Já tôd's se tinha visto qu' aquilo era as provas dum vinho moranguêro qu' ele tôd's anos faz das uvas duma parrêra qu' ele tem p'a lá p' ô pé da casa. E, p'r mode, sabe fazer aquilo bem e tem presunção em apresentá-lo im qualquer banda adonde vai c'mer.

- Ah, nã provo não, qu' ê cá nã 'tô p'a me dar aí alguma soltura s' emborcar um veneno desses p' ô bucho. Cudas qu' ê 'tô parvo ó quem?!... Tenho alguma falta disso, s' o patrão da casa tem aí vinho bom im condiçõs...

- E ê cá tamém não. Nã toco im tal peste...

Diz o Pedro Raspinga, já com um copo chêo nas mãs, qu' ele tinha despejado do garrafão sem o Tóino ver, inq'onto ele dava réplas ô Chico Arvela. E põe-o à boca, bebe-o todo duma assentada, pisca-me o olho, desata a fazer caretas e a fazer que cuspia p' ô chão e diz p' ô Tóino Arraúl:

- Méme assim, quim perde tempo a fazer uma porra destas, inda l'e gabo o gosto... Ist' é pior que bober vinagre. Munto pior...

Diz-l' o João da Chã:

- Nã ôves, põe-me lá aqui só uma pinguinha p' a provar a ver s' é verdade o qu' eles dizem...

E o Abíl'o Pastana:

-S' isso é assim, vô tamém prová-l'o. Se me dá p' aí alguma ralêra é qu' há-de ser bonito...

E, dum em um, lá se foi tôd's inchendo o copo e dando-l'e a pr'mêra arrencada. Ora, aquilo, acompanhado com aquela carninha a sair ali das brasas, punhana!, corria p'as goélas abaxo que nem se sentia... Era quem mái despejava copos...

Mái tôd's l'e punham petafes qu' era p'a ver se faziam marafar o Tóino. E, d'zer a verdade, inda hôve ali uma ocasião que quái que l' ia chigando o sãingue às ventas, mái desatô tudo a rir e ele, béque-me, teve quái vergonha, enrolô um coisinho, b'bél'e tamém uma golada e trocô-l'e as voltas.

Tacho de Arame ou das MorcelasTacho de Arame ou das Morcelas Naquilo, já as m'lheres 'tavam a fazer os preparos p' ôs mólhes e p' às morcelas...

O qu' ê sê d'zer é que aquilo foi um vê se t' avias, im menes de nada, já o garrafão ia do mê p'ra baxo. Pensí:

- Bom, isto, o melhor é a gente l'e passar a mã p'lo pelo, a ver s' ele inda vai más é b'scar ôtro garrafanito de pitrol...

Do mémo s' alembrô o Arvela, que, já desquecido do que tinha charolado antes, se volta p' ô Arraúl:

- S' ê cá fosse a ti, ia más era b'scar ôtr' garrafanito p' amostrar aí a esta malta quem é que sabe fazer vinho...

- Ai, agora, já dobraste a língua?!... Com qu' então, queres mái um garrafanito... Vai b'scar do teu... qu' há-des ter lá munto bom, assim c'm' o que corre ali da bica da fonte, que nã fazeste nenhum... Da minha casa é que já nã vem pr' aqui mái nenhum hoje... Ah, isso não...

- Ó Tóino, dêx' ô falar... Nã ligues... Vai, sim, b'scar ôt' garrafanito qu' eles têm 'tado p' aí na charola, mái isso é tudo da boca p'ra fora. Olha, falando ô sério, inda este enverno nã tinha provado pinga tã boa, se queres que te diga...

- Tamém tu, Refóias... Agora 'tás-me a qu'rer insampar com essa conversa, não?... Tamém fazeste algum? Ó nã tens coraja do apresentar?...

- Este ano bem sabes que nã fiz, mái se t'vesse fêto, tejas certo que trazia pr' aqui todo o que fosse preciso... ó p'a ôtr' lado adonde 't'vessem amigos bons c'm' estes qu' aqui 'tão...

Nisto, salta a C'mad' Olália lá de drento de casa, num grande cagaçal, sem saber de nada do que se passava cá na rua:

- Mái atão, que garrafã é este que 'tava ali incostado à parede, p'r trás daquela cadêra d' atabúa?... Fui puxar a cadêra p'a m' assentar, vejo um garrafão, béque-me com petrol, a andar de raboleta, panhí cá uma rabana... Se calha a ser de vrido, tal era isto, tinha-se fêto im cacos...

- Ó mana, tem conta com ele, nã no dêxes derramar, qu' isso é um garafanito de vinho qu' ê cá gôrdí aí p'a mái logo, senã estes marafados despachavam-no inda entes da cêa...

O marafado do Tóino Arraúl, qu' é mano da c'mad' Olália, tinha lá más um garrafão de pitrol, nã d'zia a ninguém e inda 'tava a judear com a gente, fêto cão...

Só l'es digo qu' aquilo foi mái uma paróida das grandes e, toda a tarde e nôte, nã faltô vinho moranguêro do Tóino, qu' é um amigo do melhor que pode ser e haver.

Mái, nesse mê tempo, já as m'lheres 'tavam a fazer os preparos p'a incher os molhes e as morcelas, e ê cá tive d' abalar p' ô pé delas a ver se dava tirado uns dôs ó três retratos. S' acuaso eles nã prestarem, nã é só o f'tógrafo qu' é ruim, foi tamém o moranguêro do Tóino que me fez a parte, qu' ele tinha perto duns catorze...

Panela de couve Ô chigar ô pé delas, já tinham uma panelada de côve ô fogo p' a se c'mer à cêa...

E, dessa manêra, c'm' nã há vagar p'ra má's, logo l'es conto o resto assim que possa ser.

Dés l'es dê saúde.

4 comentários:

  1. Ai Parente, que soidades das mortepoques. Dessas d'há uma perçanada de anos (q agora é privido). O que vale é qu'o Parente é uma pessoa de tecnologias e nesse tempo já tinha máquina digital!!!!
    PS: Inda este fim de semana comi um molhezito, numa feijoadazinha. O último, dos que trouxe de Lagos.
    Mái o que vale é que 6.ª feira aí vou eu ótra vez.
    Dés le dê saúde Parente e à Parenta também.

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  2. Nem imagina a indignação da minha mãe, ao saber do desmancho que fizeram à tradição da morteporque. “Que jeitos não deixarem as pessoas continuarem a tradição, que nunca fez mal a ninguém? Sempre era ali dois dias de festa e de comes e bebes!”

    Claro que se seguiu uma narrativa dos dias de matança lá para as bandas do Convento, além da cuidadosa descrição de cada uma das iguarias que ali confeccionavam, sem esquecer as azeitonas de conserva, ou as papas que depois se faziam com o caldo da cozedura dos enchidos!

    Com esta sua estória, deu para ter uma ideia de como se faziam as mortesporque à boa maneira da nossa serra (e que agora já não se fazem, claro, por cumprimento da lei.....), e do ambiente de convívio que as envolvia.

    Beijinhos para si e para a sua bela Maria.

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  3. Eu Não vou a uma morteporque desde o tempo em que era permitido, a última foi há uns 8 anos.... Adorava todo o ritual, desde a perseguição ao bicho, passando pelo momento fatal, pelo chamusco com tojos (acho), pela carninha assada ao almoço,pelo tacho da banha e dos torresmos, enfim... A parte de lavar as tripas era a excepção!
    Tempos e pessoas que não voltam, infelizmente... No entanto ler esta descrição fez-me recordar cheiros e imagens únicas...
    Lamento que já não se façam mortesporque mas ainda bem que o compadre tem uma memória tão boa que se lembra de coisas passadas como se tivessem acontecido ontem!!! E as fotos ainda são do tempo das máquinas analógicas, certamente!
    Beijinhos p si e p a D.Maria!
    Carla

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  4. Tenho origem citadina e talvez por isso custa-me imaginar (e muito menos presenciar) a primeira parte, a da morte do bicho. Há dias contaram-me uma matança (dessas que se faziam antes da proibição) em que o matador não acertou bem o golpe fatal e o porco fugiu com a faca espetada no peito em direcção à dona que tratava dele.
    Eu sei que os bichos não se podem (nem devem) comer vivos. Mas chamar festa à matança :((((((((

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