P'a uma tiborna precisa-se d' azête, alho que nã falte e uma pedrinha de sal...
Um destes dias, um amigo daqueles bons convindô-me p'a ir à casa dele ajudar a c'mer p'a lá um pedaço de pórco. P'a bem falar, aquilo nã era bem pórco dos nossos, aquilo era béque-me desses brabos qu' andam aí p'r os cerros e, à nôte, vêem afossar tudo o qu' uma pessoa tenha calhado a samear aí nos cantêros.
Nã sê adonde é qu' ele foi b'scar aquilo, mái - p'r o jêto, eles já vendem carne dessa aí im quái tôd's os talhos - calhando, comprô-a. E bem cara l' há-de ter custado qu' eles valem-se daquilo, um pessoa qualquer nã nos poder criar aí num curral e, atão, atancham a unha no freguês.
Más isso, lá o preço, tamém nã conta munto qu' o mê amigo e parente é homem de posses e nã é por aí qu' ele dêxa de fazer umas pangalhadas de javali e convindar os amigos qu' ele lá munto bem intende. E fez ele senã bem im me dar uma vaiazinha a mim e à minha Maria qu' a gente até se pela p'r coisinhas daquelas.
Bom, más o qu' ê cá l'es queria falar inda nã era bem disto. Era do qu' a gente s' alembrô de fazer às tensas de se ter a tarde toda p'r nossa conta e, c'm' jogar às cartas ninguém 'tava ent'r'ssado - fartos de jogar ôs três-setes já a gente 'tá... ó quem diz ôs três-setes, diz ô porro ó à bisca.
Diz-me ele, nas béspras:
- Ó ti Refóias, atã e s' a gente, amanhã, a seguir ô assado, aprevêtasse ali o mê forninho inda 'tar quente, l'e pusêssemos mái uma lenhita - pôca - e fazia-se tamém uma cozedura de pão? Nã tenho é léveda qu' a que se dêxô da ôtra abol'eceu...
A seguir, um panito, inda quentinho, e uma garrafinha de vinho...
- Atão, é só a gente se opôr... Tem-se é que resolver isso hoje p' à m'lher ter tempo d' acrecentar p' ali o fermento, que léveda tem a minha Maria com toda a certeza. Se há coisa qu' ela nunca se desquece é tirar logo um coisinho de massa tã penas c'meça a tender...
- S' ele é lá por isso, fale lá com a ti Maria e veja s' ela incaminha as coisas à manêra dela, qu' ê cá vô-me já d'zer à minha p'a s' aprecatar ali com os altrafices tôdos p' àmanhão 'tar tudo im orde.
- Atã, fica-se combinados. As m'lheres alevantam-se de manhã, amassam as duas logo, qu' é p' a dar tempo à massa de crecer e 'tar pronta p'a tender tã penas tires o assado do forno e a gente, s' haver precisão, vai-se b'scar um fêxinho de lenha p'a l'e dar mái um calorinho.
- Qual o quem... Tenho ali lenha que dá p'a assar um pórco intêro e fazer q'ontas cozeduras mecêa quêra...
- Olha, melhor p' à gente que nã se tem qu' alancar com esse peso na lombêra...
Mái, a conversa f'cô p'r 'qui e ê cá nã cheguí a saber ôtra coisa qu' ele tinha im mente. Só no D'mingo, já as m'lheres 'tavam quái a acabar d' amassar, é qu' ele se descoseu:
- Sabe uma coisa, ti Refóias?... Ê cá ontem nã l'e disse logo, mái resolvi a fazer uma fornadinha de pão nã era qu' a gente nã t'vesse inda uns panitos p' ô gasto da casa, fêtos a semana passada...
- Atã e que jêto te dar p'a cozer mái pão s' inda aí tens que chegue?
- Foi p'a fazer uma supresa aí ô resto da famila que vêm cá. Em eles comendem o pórco todo, q'ondo mal s' aprecatem, apresent'-l'es com uma tiborna im cimba da mesa qu' até vai lendo...
- Olha que nã 'tá mal pensado, nã senhora... O pior é qu' há-de 'tar já tudo de bazelga chêa e, calhando, nã pegam na tiborna...
- Ai nã pegam... Dêxe que logo vê. Ponho-l'e ali um azêtinho do bom, alho que nã falte e uma pedrinha de sal ô consoante, até se lembem... E, más a más, que se tem a tarde toda e a noite p'a s' entretermos...
- Nã digo que não, mái nã sará decomer a más?...
- Atã e um v'nhito alentejano qu' ê cá tenho ali p'a ajudar a escorregar à goéla abaxo?... Pósto consigo c'm' nã sobra nenhum...
- Lá no que diz respêto ô vinho, há-des ter r'zão, sim... agora a tiborna... sê cá... Ele até des que convindaste aí famila que nã é cá da serra, calhando, nem sabem o que é uma tiborna...
- Descanse qu' em eles l'e tomandem o gosto, aprecêam. E s' algum nã gostar, inda tenho ali uns barbiganitos p'a abrir...
E a coisa f'cô assim.
De manêras que, à medida que se fez horas, chigô-se tudo p' à menza, foi-se comendo e bobendo, d'zendo umas chalaças e o tal vinho alentejano a dar efêto. E, ali já p' ô mê da tarde, panito a se cozer no forno...
Foi foi, foi foi, aquilo fazeram-se horas do tirar e nã se podia a gente descudar munto nã fosse a côida f'car p'a lá munto quem-mada e, despôs, o pã nã tinha graça nenhuma. Ora quem é qu' havera de fazer tal serviço?... Acabedô-me a mim.
Nesta tiborna qu' a gente fez, era à bicha...
Logo, puseram-me a pá nas mãs, o campo era pôco, roçí com cabo na parede. Vá lá que nã foi com a frente... Despôs fui p'ra ir metê-la drento do forno e tirar o pão, nã dava aberto a porta. Tamém, estes fôrnos modernos, agora, pôem-l'e umas portas de ferro p' ali com uma aldraba qu' um homem nem percebe c'm' é qu' aquilo fonciona...
E, inda p'r cima, 'tava quente duma tal manêra que me quem-mí nas pontas dos dedos. Inda ê cá aqui tenho o sinal das borrefas no sito adonde sigurí na aldraba... E, se nã é ter logo ali o barredoiro à mão, inda molhado, p'a alimpar os dedos e rafrescá-los, 'tava o caso mal parado...
Mái, tirando isso, só o que me vi inda impeçado foi p'a dar infiado a pá na porta do forno, qu' o resto corré tudo bem. E, tamém, nã era caso p'a admirar: a porta é pertada e a pá larga qu' ê sê cá... Parêce daquelas d' aventujar o trigo na êra...
Eles inda p' lá d'zeram qu' era ê cá que já 'tava um coisinho escorvado com o tal vinho alentejano ali da Vidiguêra, mái ninguém acraditô. E mecêas tamém nã quêram crer nisso, qu' aquilo nã passa conversa deles só p'a ver se me dã fêto invergonhar...
Más a coisa lá se compôs e, com uma manita da minha c'madre, nã foi nenhum aparar ô chão.
Aí, em vendo os panitos todos no tab'lêro, nem teve precisão do dono da casa d'zer nada, p'a fazer a tal supresa. Hôve logo um que s' acusô:
- Atã e s' a gente fazesse uma tiborna?... Com o panito, agora, quentinho era do mái lindo...
As moças da cidade têm que ter munta conta com as unhas ó ficam enzêtadas...
Mái ninguém disse nada, béque-me imbatucados de 'tarem im casa alhêa, e ê tamém me f'quí, fazendo conta que nã era nada com-migo. Más o dono da casa já lá 'tava na cozinha agarrado a um prato e vá de l'e prantar alhos p'a drento.
Pôs, o que l'es digo é qu' aquilo, tã penas caí im cimba da menza, era, à bicha, tudo agarrado ô pão, méme quente a dêtar fumo, e vá do molharem no azête e c'mer q'onto mái melhor. Par'cia eles qu' inda nã tinham c'mido coisíss'ma nenhuma nesse dia...
Só as meçalhas pequenas é qu' inda nunca tinham visto tal coisa, nã se resolviam, p'r menes, a provar. Lá andavam as mães de roda delas: "come filhinha, come qu' é bom!...". Qual come nem qual o quem!... As meçalhas olhavam p' ô pão insopado d' azête, p'r o jêto, chêrava-l'e um fedor a alhos qu' era um desparate, quem é qu' as fazia ingolir tal coisa...
Más ele hôve lá uma dessas mães que teve-se barimbando p'ra isso. Era uma moça assim espigada - nã m' alembra o nome dela... - via-se qu' havera de trabalhar numa cabelerêra ó coisa assim, com as gradessíss'mas unhas e munto bem arrenjadas qu' ela tinha.
Pôs nã l'es digo nada, jogô-se a molhar sopas e a imborcar nelas, até nas unhas ela acartava azête p' à boca... Más aquilo é c'm' q'ondo se come barbigõs. Chupa-se bem os dedos e bebe-se mái um calcesinho de vinho... Foi o qu' ela dé im fazer. Bençoada!...
Bom, vô más é me calar, senã vomecêas aborrêcem-se com-migo. Em l' apetecendo uma tiborna, façam c'm' à gente: cozam panito e, tã penas o tirem do forno, joguem-se a ele, com azête, alhos e um coisinho de sal. E tamém há quem l'e ponha açucre ó sumo de laranja. Más ê cá nã gosto munto.
E até qu' a gente se veja. Tenham tôd's munta saúde.