19 dezembro 2008

"Memória das Coisas" do senhor Carricinho

A Memória das Coisas - António da Silva Carriço
Mái um livro do senhor Carricinho

Sáb'do passado, fui até à Biblioteca. D'zeram-me qu' iam dar p'a lá uma festa, com comes e bebes e tudo, p'a amostrarem um livro com uns contos qu' o senhor Carricinho escreveu e ê cá nã me dí aguentado sem par'cer p'r lá.

D'zer a verdade, isso nã era coisa qu' ê fazesse ô homem. Atã s' ê sô amigo dele, gosto tanto de ler o que qu' ele escreve no Jornal de Monchique... e nã par'cia lá numa ocasião destas?!... Más a más, qu' o tempo 'tava infarruscado que nem o diacho e, a nã ir lá, p' adonde é qu' ê cá ia...

Pôs atão, fiquem sabendo que fui e nã dí o tempo p'r mal empregue. Aquilo foi uma coisa munto emportante, nã cudem. Se vissem o gentío que lá s' ajuntô...

A Memória das Coisas - António da Silva Carriço Punhana!... ô lado do homem só 'tavam dôtores...

Olhem, aquilo era Dôtores, era Professores, era os dos partidos - os que 'tã na Câm'bra e os que nã 'tão, mái querem ir p'ra lá - a famila do Jornal de Monchique e da Rádio Fóia, ê sê cá o que más... E despôs, era ê cá e mái uma mêa-dúiza assim c'm' ê cá.

O mê compad'e Jôquim do Barranco nã foi, o marafado... Des que sabe ler pôco e, atã, agora, com a falta de vista que tem, inda menes. Méme com uns óc'les qu' o Zé Manel trôxe lá d' adonde ele trabalha - foi um estrangêro qu' os dêxô lá, uma vez, desquecidos - e l'e deu, já nã se defende.

Qu' ele, d'zer a verdade, podia munto bem ter ido, que nã tinha precisão de ler lá nada. Aquilo era só p'a se os ôvir - e olhe que cada qual falô q'onto pôde... - e, os que t'vessem um coiséco mái de vergonha, comprarem o livro p'a o lerem im casa com mái vagar...

A Memória das Coisas - António da Silva Carriço
...e um lindessíss'mo ramo de flores...

Mái, dêxando de rir p'a mangar, gostí munto d' ôvir a conversa dos homens. Tôdes falaram munto bem - cada qual à su manêra, 'tá bom de ver - a começar no Sr. Presidente da Câm'bra que, com perdã da palavra, 'tava de munto boa avêa, c'm' quái sempre, e a acabar no Senhor Carricinho que tamém 'tava contente, mái, ô méme tempo, im certa altura nã se livrô de quái se l' arrasarem os olhos d' água.

E nã era caso p'ra menes. Com tanto coisa bonita que d'zeram a respêto do homem - tudo verdade, nã cudem! - quem é que nã f'cava naquele estado?... Olhem, um professor-dôtor que vêo de Faro d'apr'pósito, ch'mado Antóino Mendes se nã 'tô im erro, nã l'es digo nada. Aquilo só com um agravador qu' ê cá nã l'es dô incarecido o qu' aquele homem p'a lá pintô com respêto ô livro do senhor Carricinho e ôtras coisas lá da vida dele.

De manêras que, à uma, 'tava já d'jando de me vir imbora p'a desatar a ler aquilo tudo qu' o senhor Carricinho escreveu, mái, à ôtra, 'tava-me tamém luzindo o olho p'r umas coisas de comer qu' eles puseram lá im cimba duma menza, qu' aquilo tinha aira de ser coisa boa. E ninguém tinha ordem p'a tocar lá inq'onto nã acabassem tôdes de falar. Foi o que se deu.

A Memória das Coisas - António da Silva Carriço
Q'ondo chigô a vez dele, o senhor Carricinho falô c'm' só ele sabe...

E, ôtra coisa, o senhor Carricinho, despôs do faladoiro, inda se pôs a escrever dedicatóiras nos livros dos que compraram. Más, aí, vêo a mê favor, que f'quí com um livro do mái bonito que possa ser e haver, e bom, e com a letra de quem no escreveu a me mandar um abraço.

Ô certo, ô certo, é que aquilo só acabô já era de nôte e de nôte bem cerrada. Mái vá lá qu' a chuva já tinha abrandado e tamém nã me tinham limpado o mê chapé-de-chuva qu' ê cá dêxí logo à porta da antrada. E, verdade se diga, leví toda a tarde a catarruar só cá p'ra mim s' ele inda lá 'taria à saída...

Mái, voltando ô livro "Memória das Coisas", chego a casa, já nã me dé jêto rapimpar-me com o decomerzinho qu' a minha Maria p'a lá tinha fêto - des que "quem nã come p'r ter comido, nã é doença de p'rigo"... - e joguí-me foi logo a ler aquilo tudo d' infiada. Foi até às tantas...

A Memória das Coisas - António da Silva Carriço
E, ô fim, p' ôs que qu'seram, inda pôs uma dedicatóira no livro. Ê cá quis logo...

'Tá bem qu' ê cá já tinha lido aquilo tudo, ó quái tudo, no Jornal de Monchique, mái ler, assim , no livro béque-me dá ôtra enfluêinça, o qu' é que mecêas querem... E inda ôtra: o homem fala lá de coisas d' ôtres tempos que, quem conheceu, c'm' ê cá, até fica insampado.

Assim, de chofre, vem-me à idéa o Viva à Rússia, o Zézinho Bartolomeu, o Ti Arraúl, o Jôquim Inês, o Zé Lôrenço e ôtres tantos.... Fala neles tôdes e im munto mái coisas ainda. Comprem o livro "Memória das Coisas" e logo veem se nã morêce bem o d'nhêro que custa. É de ler uma vez e ôtra, fiquem sabendo, e um bom sapatinho, agora p' ô Natal...

Olhem que só foram fêtos mil!... E p'r o caminho qu' a coisa levava no dia da apresentação, im menes de nada se vã acabar. C'm' já se dé na pr'mêra edição. E despôs nã digam qu' ê cá nã nos avisí...

Até qualquer dia e bom Natal p'a mecêas tôdes.

04 dezembro 2008

Anda por 'í um poder de javalis

Javalina com crias
A escravelhêra dé um ronco, alevantô o trombil... Inda cudí qu' ela me jogasse um fiaço......

Naquela vez qu' o tal grifo apoisô lá no telhado do mê compad' Jôquim do Barranco, aquilo, 'tá bom de ver, servi de faladoiro p' ô resto do dia. Cada qual contava lá as partes que l'e vinham à cabeça - umas verdade, ôtras mintira.

E, antão, o parente Zé Caçapo, verrinoso c'mo é, tinha qu' ingeròcar logo uma inda mái estrambólica qu' à dos ôtres. Qu' ele - calhando, mecêas tamém já o conhêcem - nã s' acontenta com pôco... Más, o pior, é qu' o badalo impurra com aquelas gradessíss'mas mintiras, afiança que sã verdade e inda quer que qualquer um acradite...

- Mái, vomecêas, haveram de ter visto aquilo... Isto, apoisar aqui um grifo - ó lá qu' o Zé Manel l'e chama... - nã tem nada a ver com o que se dé com-migo, ontordia, ali nas Portelinhas...

- Grande mintirão qu' ele vai pôr, punhana!... - diz o Zé Manel só p'ra ê cá ôvir.

- Cala-te pr' aí, Zé Manel... Olha que s' ele ôve...

- Aquilo já era assim lusco-fusco, ia ê cá munto bem sa senhora boa vida caminho de casa, oiço um ronco ali p' trás duma mongariça, nã é que panhasse medo, mái dí um estrameção e f'quí assim, béque-me, a olhar p' àquilo...

- Alguma luca...

Javalina com crias
As porcas, em tendo bacorinhos, sã ruinzíss'mas...

- Ó rato tòpêro...

- Um rato tòpêro me saíste tu... Era más era uma escravelhêra com um rabanho de bacorinhos... Logo, só vi os bacoralhos, mái, despôs, dô com a mãe, uma porca de tod' ô tamanho, já com com uma preção de barrigas...

- Tinha fugido dalguma malhada?

- Qual malhada... Era dessas brabas... Negra que nem um cravão e com uns sês ó oito bacorecos, tôdes marelinhos às riscas....

- Uma javalina com crias... - diz o Zé Manel.

- Sim, pr' aí uma coisa dessas... Chama-l'e c'm' qu'reres...

- Atã, e despôs? Fugi tudo com medo de si?...

- Que jêto?!... Ê cá é que me vi im traquetes com aquilo... O bicho volta-se p'ra mim, os bacorecos foi tudo p' à roda dela, põe-se assim béque-me a chêrar p' ô ar, dá ôtro ronco e avença d'rêto a mim que nem um seta...

- Isso i'-ô comprimentar, ti Zé...

- 'Tás a antrar com-migo?!... Ai ia-me comprimentar... Ela ia más era me dar uma dentada, s' ê cá nã fujo tã depressa p'ra riba dum madronhêro que 'tava logo ali da banda de cimba do casminho...

- Vomecêa?... P'ra riba dum madronhêro?!...Javalina

- Sim!... Ingraminhí até ô bico que nem uma fita... Q'ondo a porca chigô ô pé do tróçoê cá ia na sigunda pernada...

- E ela jogô-se atrás de si, ó quem?

- Alguma vez?!... Aquilo era uma madronhêra quái do tamanho desta casa... F'cô ali a olhar p'ra mim e vá de morder no tróço que l' ia tirando a casca toda logo ali à rés da raiz...

- Ora mecêa a assubir um madronhêro à rôpa toda... 'Tá-se méme a ver... Nem p'ra cimba duma urza mecêa se dá jogado, q'onto más...

- Ai nã dô... Lá pensas qu' és mái safo do qu' ê cá...

- Pagava p'ra ver!... E posto que mecêa, s' alguma vez visse uma porca braba - que nã viu - nem tampôco dava dado um passo qu' ela nã l'e t'vesse já jogado a boca ôs fundilhos das calças...

- O quem?!...

É pá... aí, o parente "Verruma" dá-l'e uma gavierra, - o homem é munto inzainadiço - faz-se d'rêto ô Zé Manel, inda vi jêtos deles se pegarem.

Mái, o mê compadre, assim c'm' quem nã quer a coisa, passô p'r o mêo deles, jogô a mão ô chapéu, dá um incalhão no ombro do ti Zé qu' o homem dá logo um gangueão p' ô mê lado.

- Ó t' Zé, desculpe lá, foi sem qu'rer... Tenho que mandar alisar esta rua. Atã, nã vê, incalhí ali naquele alto, ia caindo p'ra cima de si...

- ?!...

- Olhe lá, - aqui piscô-me o olho... - nã quer ôvir uma parte que se dé tamém com-migo, faz aí coisa dum ano, além no Covão da Loba, com bicharada dessa? Aquilo foi uma coisa temente...

O ti Zé Caçapo nã f'cô assim munto convencido, mái o mê compadre piscô-me ôtra vez o olho, qu' ê vi logo que nã ia sair dali boa, e desatô a contar a dele.

Crias de javali
Im piquenalhos, quem é que diz que sã o que são?...

- Pôs com-migo foi inda munto pior... Panhí uma rabana dessa vez que nunca mái me dô desquecido.

- Mái ôtro intrujice do mê pai igual à do ti Zé... - Diz o Zé Manel, que nã tinha visto ele piscar o olho.

- Ó Zé Manel, dêxa o homem falar... C'm' é que foi, compadre, c'm' é que foi? - Dig'-l' ê cá, a ver s' a coisa disfarçava e eles nã s' ingalfinhavam pr' ali.

- Más isso, atão, foi inda im mêa tarde, ia o sol bem alto. E 'tava cá uma calma...

- Querem ver que se jogô p'a drento d' algum tãinque, méme sem saber nadar, e 'tava lá alguma cobra-d'-água qu' o qu'ria ingolir...

- Pior!... Munto pior!...

- Perdé o pé e dé uns gragolêjos méme sem querer...

- Ia ê cá, suado até mái não, passando p'r baxo daqueles saicêros que 'tã lá na r'bêra e consolando-me com aquela fresquidão da sombra deles, oiço tamém um barulho...

- Algum escalavardo... ó zorra... ó, atão, alguma felosa a c'mer amoras...

Javalis
Os grandes gostam é de levar no espòjêro...

- Assomo-me ali pr' a baxo p'a um pego adonde, nôtres tempos, usava a panhar uns bordás com raiz de travisco, aquilo 'tava quái seco.

- Atã, isso era alguma iró a dar saltos já im seco...

- Dô mái um passinho ó dôs no mê dumas rabaças, com munto jêtinho p'a nã fazer barulho, o qu' é que me havera de par'cer ne frente, assim de chofre?...

- Um gato brabo a bober... - Diz o Zé Manel, sempre no gozo...

- Nã senhora... Três porcos brabos do tamanho de bezerros!...

- Punhana!...

- Os três espaldêrados ali no mê da lama a se espòjarem... Mal se l'e viam os olhos...

- Tamém pagava p'ra ver... Mecêa com os olhos tôdes esbugalhados e sem saber o que fazer... - disse ê cá p'a ajudar a compôr o romãinço.

- Ê sube logo munto bem o que fazer, nã cude. Abalí a fugir, dí um pulo que salví as rabaças e o córgo p' à banda de lá, e joguí-me ô tróço duma sobrêra...

- Nã me diga que tamém assubiu a sobrêra até ô bico?!...

- Ora assubi... Fui até à últ'ma ramaja...

- E os javalis?

Javalis
Munto pórco-javardo há por 'í, agora...

- Fazeram c'm' à porca braba do ti Zé. Puseram-se a fugir atrás de mim, bateram com o trombão na corcha e um inda s' impulêrô numa forca baxa qu' a arve tinha logo aí a uns cinco ó sês palmos do chão...

- Inda foi sorte... Se calha a ser numa madronhêra grossa, os bichos inda s' afituravam a partir algum dente, mái, assim, a corcha amortecé o porro...

- Méme assim, um, q'ondo se foi imbora, inda ia escorrer a sãingue, nã cude...

- E 't'veram lá munto tempo, compadre?

- Cale-se aí... Aquilo durô a tarde quái toda... Já cudava que tinha de dromir im cimba da sobrêra. É qu' os bichos prantaram-se ali à coca e nunca mái s' iam imbora, e, s' ê cá viesse p'ra baxo, eles faziam-me a falseta...

E a conversa foi durando quái toda a tarde, c'm' à espera dos javalis, até qu' o Zé Manel, já farto daquilo, saltô com a gente:

- Olhem lá, que vocêas eram três velhos imparvetadosê cá sabia, agora assim tã mintirôsos inda não... Calem-se más é já pr' aí com isso... Cudam qu' alguém acradita im tanta parvidade?...

E era verdade. Os javalis nã fazem figuras daquelas. De dia, 'tã, quái sempre, a dromir. E, em sentindo a gente, fogem logo. Só se 'tarem feridos é qu' é melhor nã ir munto p' ô lado deles.

E alguma porca que tenha bacorinhos tamém nã gosta qu' uma pessoa os vá impertenecer. Aí, é capaz de l'e dar alguma ravasca e cudadinho com ela...

Ô certo, ô certo, é qu' ele, agora, há por 'í javalis até mái não. E, na lua chêa, já tenho ôvisto uns tiros, assim ô longe, aquilo nã passa sem ser eles aí a caçá-los p'r esses cerros.

Fiquem-se com Dés, até qu' a gente se veja.