10 dezembro 2007

A Apanha do Madronho

Medronhos maduros
Chega a esta altura do ano, até dá gosto ver fruta assim...

Desta vez, vô-me falar aqui de madronhos. Mái ficam já a saber qu' os retratos ó foram tirados já há muntos anos, q'ondo isto inda 'tava livre, ó atão sã mintirôses. E o qu' ê cá d'zer é tamém tudo mintira. Invençõs cá da minha caximóina.

É que nã vã eles p' aí cudar - esses do asae ó lá o que é - qu' ê cá andí a panhar madronhos p'a fazer alguma pinguinha d' aguardente p'a mim bober com a minha Maria - olhe qu' ela, ô mata-bicho, gosta dum solvinho... - ó com um amigo ó ôtro que s' ajunte com-migo e tamém aprecêe um calcesinho da boa...

Atã fiquem a saber qu' isto agora, aqui im Monchique, já é privido fazer quái tudo:

Mórteporques nã se pode fazer qu' eles vêm, murtam a gente, e, inda p'r cimba, levam o porquinho já arrenjadinho e tudo;

matar um chibo ó ôtro bicho qualquer qu' ele seja, dá-se o mémo;

fazer uma aguardentinha de madronho isso inda tem mái que se l'e diga... Vã lá adonde a gente a tenha, lacram a porta e, agora, dêxa-te p' aí f'car à espera, que nem na casa um homem pode entrar... E, a seguir, ó um f'lano se legaliza - c'm' eles dizem - ó aquilo 'tá torta qu' a murta é certa e o material 'tá perdido...

Olhem, inda p' aí o ano passado, ó há dôs anos, nã quero mintir, um homenzinho ali das bandas de S. Marcos - isto foi o que me d'zeram qu' ê cá nã no conhecia, Dés o tenha im bom descanso - tinha p'a lá umas vaselhinhas de madronho a frever.

Ramo de medronhos
Numa madronhêra destas, assim carregada, enche-se dôs ó três cestos im menes de nada...

Andô uma remessa de tempo a panhar uns belos madronhitos - calhando, uns dôs ó três meses e com mái alguém im companha - todo contente cudando qu' ia tirar dali um ganhozinho más ó menes. Cudava ele...

Pôs, q'ondo menes contava, eles foram lá, foi o bonito... Que nã teve graça nenhuma, 'tá bom de ver.

Fecharam-l'e a adega, puseram-l'e um selo na porta e o pobrezinho do homem ali f'cô que nã sabia p'a que lado s' havera de virar. Pôs-se a pensar naquilo, a pensar... e nã via manêra de resolver o caso.

Antrar lá... nã podia, nem tampôco p'a ver c'm' a massa 'tava e acrecentar uma gota d' água nas vasilhas, sendo preciso, ó ver s' alguma dorna 'tava rota.

Legalizar aquilo bem qu' ele gostava, mái nã dava que nã tinha condiçõs p'a isso. Nem de posses nem de saber. E as enzegências eram muntas. Ôtra saída nã via p'r donde. O qu' é qu' o homem l' havera de dar na cabeça?... Fazer uma parte ruim. Ruim p'a ele, pobrezinho, qu' assim perdé tudo.

Vai caminho da adega, espedaça aquilo tudo. Porta, vasilhas, madronho, forneca... tudo o que p'a lá 'tava. E, a seguir, dé cabo da vida dele tamém. Des que nã s' haveram de f'car cá a se gozarem daquilo qu' era dele e que l'e tinha dado tanta mort'ficação...

Isto foi só p'a d'zer que, certas ocasiõs, uma pessoa fica sem saber o que pensar. Sará qu' estas lês sã bem fêtas? Sará que, já alguma vez, algum desses qu' as faz abalô lá de Lisboa, ó de Bruxelas ó lá adonde 'teja no sê belo escritóiro, a ver c'm' é qu' as coisas se passam cá p'r estes sitos?

Apanha do medronho em Monchique
Nôtres tempos, panhava-se madronho p'a drento dum cesto...

Ò só sabem vir ô Algarve p'a abanharem no mar, lá p'ra baxo p'a Vila Nova ó im Q'ôrtêra ó nôtre sito que tenha praia?...

Calhando, podiam munto bem fazer as coisas duma manêra mái jêtosa e dêxavam p' aí esta famila d' ôtres tempos, c'm' ê cá, ir-se vivendo à nossa manêra qu' era assim qu' a gente se sintia bem. E 't'vessem descansados que, p' ôs mái nôvos, já nã tinham precisão de fazerem esses lês...

Tirando p'r 'í um ó ôtro que gosta de ver estes c'stumes antigos - só p'a saber, 'tá bom de ver... - o resto nã sabem c'm' é qu' estas coisas se fazem e tamém nã l'es ent'ressa saber. De manêras que, assim c'm' àssim, isto é só mái mêa-dúiza d' anos e acaba tudo...

Mái dêxamos isso da mão...

Uma ocasião, fui panhar uns madronhitos lá p' à Refóias - qu' ele, méme agora, panhar madronhos inda nã ôvi d'zer que fosse privido, sará?... - e convindí o mê compadre Jôquim do Barranco se nã queria fazer um torna-boi com-migo. Ele ia panhar uns dias nos mês madronhêros e, despôs, ia ê cá p' ôs dele.

O homem disse logo que sim e que levava tamém a c'mad'e C'stóida qu' era p' à gente se despachar mái depressa. E lá qu' ela é boa panhadora de madronho, lá isso 'tejam certos que é. Nã fica atrás de qualquer homem, nã senhora...

De manêras que, p'a l'e fazer companha, fartí-me de brigar com a minha Maria, 'té que lá a dí fêto abalar tamém com a gente.

Apanha do medronho em Monchique
D' entes, punha-se o madronho im sacas...

E nã l'es digo nada. Puseram-se as duas a panhar madronho ali numa bêradinha - 'tá bem qu' elas escolheram logo as melhores madronhêras - aquilo eram c'm' duas b'chaninas... Im menes de nada, 'tavam cada uma com o sê arregaço chêo p'a despejar na saca.

Nesse tempo, as m'lheres inda usavam arregaço p'a panhar madronho e a gente usava-se um cesto de verga pindurado a tiracolo numa corrêa de coiro. Em se tendo isso chêo, despejava-se tudo p'a uma saca e q'ondo se vinha à bucha, cada homem trazia a sua saca às costas p' a despejar na vasilha.

Hoje em dia, já é tudo im plástico... É um balde de plástico a tiracolo p'a panhar os madronhos, uma sélha de plástico p' ôs ajuntar e uma vasilha de plástico p' ôs conservar.

D'zer a verdade, é um descanso. Apr'vêta-se tudo, nã se esperdiça nada. E o balde semp'e é mái leve p'a andar pindurado ô bescoço dum homem...

Pôs, dessa vez, aquilo quái que s' andava a despique uns com os ôtros. Elas lá na tal bêradinha, perto do córgo, e a gente os dôs ô mê da chapada prê a cima, a ver quem é que inchia pr'mêro a saca.

E olhe qu' as marafadas pediam meças à gente. À hora da bucha, tinham a saca chêa tal e qual c'm' à nossa e inda traziam cada uma o sê arregaço já com mái uma bela manchinha.

Aquilo é qu' elas fazeram um cagaçal...

Apanha do medronho em Monchique
...hoje im dia, já se usam sélhas de plástico...

- Ó comadre Mari Refóias, méme assim, as duas ali quái na brincadêra e inda se panhô uma preçanada de madronho a más qu' os nossos homens...

- S' a gente se tem oposto mái um coisinho, logo via. Panhava-se más era uns dôs drôbos a más que eles. Isto já 'tão uns saganhetas duns velhos que nã servem quái p'a coisíss'sema nenhuma...

- Calhando, im vez de porem os madronhos p' ô cesto, foram c'mendo neles...

- Pôs... E agora, nã têm nada im 'tar escarados... qu' isto, com o madronho, maduro c'm' ele 'tá, em se comendo uma manchinha deles, embobeda...

Aqui, dí im estranhar tanta conversa, digo p' ô mê compad'e Jôquim, assim im jêto delas nã ôvirem:

- Mái atão, com esta groja toda, querem lá ver qu' as velhacas se foram à garrafinha da aguardente qu' ê dêxí além naquela pelhêra que 'tá logo ô pé da forneca e a gente nã dé p'r isso?!...

- Sê cá...

- Olhe que foram, compad'e jôquim!... E aquilo tinha ê cá trazido p' à gente os dôs... Dêxe lá qu' ê já vô-me deslindar isso...

- Ê cá prècuro à minha C'stóida...

- Nã senhora... Dêxe-as lá que, p'r o que 't'ver inda na garrafa, ê sê logo se falta alguma ó não. Ela 'tava méme quái chêa até ô gargalo...

E peguí numa saca de madronho, joguí-a p' ô ombro e abalí prê abaxo, à frente de tôd's p'a chigar pr'mêro ô pé da garrafinha. Elas abalaram logo atrás de mim, num grande lanedo uma com a ôtra, p'a verem a cara qu' ê cá fazia ô dar com a parte qu' elas tinham fêto à gente.

Antro p'r a adega adrento, olho logo p' ô lado da forneca. 'Tava um coisinho escuro - ó saria ê cá que vinha incandeado com a luz do sol - logo, nem a garrafa ê via. Pensí:

Apanha do medronho em Monchique
... e vasilhas de duzentos litros, tamém de plástico, im vez de pipas ó dornas...

- Ai, marafadas, qu' até a garrafa levaram àlém p' ô mato e tudo!... Atã assim, nem uma pinga qu' a gente já vê de lá...

Mái, p' ali descarreguí a saca dos madronhos c'm' pude - que nem a despejí p' à vasilha nem nada, dêxí-a ali incostada - e fui caminho da tal pelhêra. Vejo a garrafa, jog'-l'e logo a mão. Mái atão... aguardente nenhuma... E béque-me tamém estranhí a cor da garrafa. Vô-me p' ô lado da porta p'a ver melhor, elas a antrar.

- Atã, compadre, vem aí de garrafinha na mão, é p' a dar um calcesinho aqui às trabalhadoras?...

- Bem que se morêce. Com os madronhos qu' a gente panhô as duas...

- Ah, inda 'tã a fazer porra de mim?!... O qu' é que foi fêto da aguardente qu' ê dêxí aqui esta manhão?... Levaram-na p' além... Ê vi logo que vocês as duas andavam era com uma bagadinha na asa agarradas às madronhêras...

- A gente?!... Isso foi coisa d' algum rato làrião que andô aí e l'e fez a parte, compadre...

- Ê é que sê que rato é que foi. Nã foi um rato, foi duas lariôas...

E olho bem p' à garrafa. Era ôtra, home... As marafadas tinham-me tirado de lá a garrafinha chêa e puseram uma velha, toda empòzada, que p' ali incontraram im qualquer canto.

- Ah, suas filhas duma magana, que me fazeram panhar cá uma rabana!... Ê já a cudar que vocêas 'tavam era p' aí bêbadas relaxadas... E, inda munto pior, que tinham dado fim à aguardentinha que 'tava destinada a mim e ô compad'e jôquim e f'cava-se os dôs juar sem se provar um solvinho dela até à nôte...

Ora, aquilo foi uma barrigada de rir p'a elas e p' à gente tamém. Inda levaram a judear com-migo até s' acabar de c'mer, mái, e daí, lá descobriram a garrafinha chêa que tinham descondido debaxo dumas carquexas secas e bebé-se-l'e os quatro um solvinho cada um, p'a ajudar à digestã.

Da parte da tarde, foi-se panhar mái umas duas saquinhas de madronho, qu' ele, nesse ano, havia munto e grado.

E nã se esqueçam qu' o qu' ê disse aqui é tudo inventado, e os retratos tamém nã sã d' agora. É tudo uma inganifa...

Passem todos munto bem, até qualquer dia.

1 comentário:

  1. Em vez de simplesmente aparecer para confiscar o produto do trabalho das pessoas, a ASAE devia, antes de mais, esclarecê-las sobre o motivo da sua intervenção, e depois auxiliá-las a regularizar as suas actividades. Trata-se muitas vezes de produtores anciãos, que desconhecem os procedimentos burocráticos, e não compreendem porque são impedidos de continuar a tradição com que vivem desde sempre.

    Como normalmente a bebida é para consumo doméstico, as despesas de legalização acabam por não compensar sequer o esforço e o investimento, e muitos produtores tendem a desistir.
    Ora, a produção de medronho está enraizada no viver das gentes de Monchique, devendo por isso ser incentivada.

    Ou os produtores de unem e criam uma espécie de cooperativa para suportarem os encargos, e produzirem em quantidades comercializáveis, ou a tradição acaba por sucumbir à legislação dos que "só sabem vir ô Algarve p'a abanharem no mar".

    E agora no Inverno, nada melhor que um calcezinho de melosa para espantar o frio do corpo, e da mente!

    Cumprimentos para si e para a sua Maria :)

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