D'mingo passado ajuntaram-se uma preção de tocadores de fole, no Largo dos Chorõs, p'a amostrarem a sua hab'lidade a quem os qu'sesse ir ver. Ê cá 'tava logo lá caído mái a minha Maria, que, coisas destas, só nã sabendo é qu' as perco.
'Tá bem qu' aquilo c'meçô inda mêa-tarde e 'tava um calor marafado, mái g'ande parte das cadêras panhavam uma bela sombrinha das tilêras e 'tava-se lá escapatòiramente. Uma vez p'r ôtra, lá vinha uma luzerna p'r o mêo das pernadas das arv'es e acalava-me nos cascos, mái, consoante o sol foi desandando p'a poente, dêxô de m' apequentar.
Já se viu qu' a Junta de Freguesia quer "dar vida às tradiçõs", c'm' diz ali no vrido do convindado que deram ôs tocadores, e faz muntíss'mo de bem, qu'os nossos c'stumes 'tã tôd's a levar s'miço. E atão, já fez este ajuntamento dezanove vezes. Bençoada...
Mái, já agora, tamém l'es digo qu' ele há um c'stume qu' a famila tem que já havera de ter perdido. Sabem o quem? É o de chigarem semp'e atrasados a tudo e nunca c'meçar nada a horas. Marcam p'às quatro, c'meça das cinco em diante...
Até a minha Maria já sabe isso bem:
- Ó homem, p'a qu' é a gente abalar tã cedo, aí a uma torrêra destas?!... Nã cudes qu' aquilo c'meça entes das cinco, que nã c'meça. Vai-se p'a lá p'ra quem? P'a se 'tar lá sentados a olhar p' ô ar?...
- Nã, nã. E s' eles desatam a tocar entes da gente chigar lá?... Vamos más é já, qu' ê nã 'tô p'a perder parte daquilo.
E nã é qu' a marafada tinha re'zão?... Q'ondo o homem qu' anunciava as coisas foi a pr'mêra vez p'a cimba do palco, já m' ê doía os quartos de 'tar sentado à espera. E a minha Maria a sovinar:
- Vês, vês, ê nã te disse... P'a qu' é qu' a gente vê' p' aqui logo àquelas horas?... E inda eles nã puseram os foles além im cimba, qu' andam tôd's p'r 'í com eles às costas...
Já a gente l'e doía os quôdris de tanto 'tar sentado, inda os tocadores andavam p'r lá com o fole às costas...
Até que lá se arresolveram a dar c'meço àquilo e, aí, a conversa já foi ôtra. É qu' ele há p'r 'í uns q'ontos que sã marafados p'a dar ô dedo... E tem que se l'e diga. Homens, os mái deles, d' oitenta anos p'ra cimba - o mái velho já vai d' oitenta e cinco p' ôs oitenta e sês, vejam lá - e inda se dã ô encómado de vir tocar uma modinhas p' à gente se consolar.
Tamém par'ceram duas m'çalhas - nã sê qual a mái bonita - e dois m'çalhos inda mái novinhos, béque-me com uns doze ó treze anos, se tanto. E, olhe, tocavam modas destas m'dernas d' agora, mái sô-l'es franco, 'tavam munto bem arremendadas e podiam-se ôvir que dava gosto.
De manêras que, f'quí sast'fêto p'r ver qu' inda parêcem alguns nôvos agarrados a um folezinho p'a nã dêxarem acabar uma coisa tã bonita.
Fole dig' ê cá, qu'o mái pequenalho tocava concertina e uns q'ontos dos mái velhos tamém. Ai, marafados... Com uma concertina de duas escalas par'cia eles que 'tavam a tocar com um fole desses d' agora, ligados à elec'sidade e tudo...
Pôs, fiquem sabendo que nã se dava p'r nada. Fosse ele com fole fosse com concertina, as modas saíam que só m' apetecia era balhar c'm' nôtro tempo, méme ali ô ar livre. É qu' aquilo era valsas, corridinhos e pass'dobles do melhor. E um até tocô um tango...
- Ó Maria, olha lá o ti Adelino, lá do Pincho. Um homem com oitenta e dôs anos, já fêtos, olha c'm' ele mêxe aqueles dedos... E nã desacerta nada.
- O fole é antigo, más é dos bons. Abre-o ali todo qu' é c'm' um valente... Ai esta, s' é antiga!... Há mái de trinta anos qu' ê nã ôvia tal moda. Já nem tampôco m' alembro do nome dela.
E assim foram passando neles - cada um tocava três - que 'tava-se tudo ali ad'v'rtidos até mái não. E, inda a mê favor, calhô-me f'car assentado ô lado do mê parente Zé da P'rtela Baxa. Aquilo é um homem que se perde p'r foles. E sabe apreciar, sa senhora.
- Ó Refóias, olha-me bem só p'ra este mecinho. Des que tem uns treze anos, se tanto, - 'tva a falar do Marcelo F'lipe, ali da Nave - e toca p'r música. Só nã sê quem é que l' ensina, mái qu' ele faz-se ali um tocador do melhor, 'tejas certo qu' ele se faz...
- Ah, isso é certo e sabido. Com esta idade e já nã fica atrás de qualquer...
- E nã tarda nada, vem aí ôtro, inda mái novinho, que des qu' o pai, que tamém é tocador, é qu' l' insina. Esse é ôtro que tamém se faz. Toca na méma concertina qu' o pai e é uma coisa qu' ê cá acho bonito...
- Atã, é aquele mecinho João Costa, qu' andava lá na Fêra do Artesanato de Marmelete, de roda do pai, enq'onto ele fazia canastras?
- É esse mémo. Aquilo é uma famila com habilidade p'a munta coisa...
E lá foram ch'mando neles p' ô palco, uns atrás dos ôtres, e a famila vá de bater palmas que 'tava tudo tã influido que nem mecêas calculam...
Nisto, chega a vez d' ôtro tocador cá de Monchique, ch'mado Adelino Nunes, más este é mái completo. Leva tamém acompanhamento. Nos f'rrinhos, o ti Zé Lexandre, nas castanholas, o ti Tóino Branco, que tamém sabe tocar concertina.
E fazem-me cá uma joldra!... O ti Tóino parêce que tem azôgue. Até com os cat'velos ele toca castanholas... O ti Zé Lexandre é que teve um coisinho de pôca sorte. A mê da moda, parte-se-l'e a tamiça dos f'rrinhos, caiem-l'e no chão, foi uma risada. Qu' isto já se sabe, a gente faz pôrra de tudo... Mái nã é p'r mal, é só p' à famila s' ad'v'rtir...
- Mái atão, parti-se-l'e a tamiça e o pobrezinho nã dá atado aquilo ôtra vez...
- Ai, coitadalho... Lá foi àlém p' ô canto. O homem f'cô com nèrvôso, nã vês qu' até l'e tremem as mãs...
- Olha, já se desenrascô. Jogô a tamiça fora e sigura no ferro méme com a mão.
- Nã dá é tã bom som... Mái arremedeô-se.
A seguir, fica o ti Tóino Branco a tocar concertina e o ti Zé Lexandre a tocar f'rrinhos, qu' é só o qu' ele toca.
O ti Tóino, punhana!, quái que esbroncava a concertina com a força que fazia... Esticav'-a até mái não e vá p'ra cá e vá p'ra lá, e o t' Zé à rasca p' ô dar acompanhado, mái, q'ondo chigavam ô fim da moda, aquilo batia semp'e certo.
Nesse mê tempo, já tinha par'cido tanta famila ó tampôca que nã havia cadêras que chigassem nem p'a àmetade... E os que 'tava assentados nã largavam o lugar nem p'r nada. Qu'riam era ver aquilo tudo até ô fim.
Inda assim, par'cé munta gente. Bem uma àmetade, t'veram que f'car d'em pé, que nã havia cadêras que chigassem...
- Da quem nada, o mê Antóino abala daqui, chega a casa, nã tenho nada fêto p'a l'e dar...
Sagradiava a Cãinda Jornalista p' à ti Balbina da Corte. Mái, c'm' à ti Balbina é um coisinho surda e Cãinda tamém parêce uma gralha, tinha que falar tã de rijo que toda a famila ôvia o qu' ela d'zia.
- Atã nã dêxô assim um jantarinho mê adiantado, que, q'ondo chegue a casa, seja só l' acrecentar a mastura?...
- Qual o quem. Alguma vez ê cudava qu' isto durasse assim tant' ô tempo...
- Olhe, sabe o que mecêa faz? Arrenje-l'e assim uma coisa que se faça depressa. Umas sôpas de t'mate ó coisa assim. Ele, este verão, nã fazeram assim grandes branduras e os t'mates inda nã 'tã azedos, faça-l'e umas sopinhas de t'mate, sa senhora...
- Isso era s' ele nã fosse bicoso c'm' ele é...
- Ah, ele é de má boca?!... Atão, má da volta. Lá na minha casa, nunca tive ninguém assim. E sabe o jêto? É que com-migo era: quem nã gosta dêta-se ô lado. E mái nada...
- Atã, havera de l' acabedar um com-m' ô meu, que logo via q'ont' é que l'e custava...
E a conversa nunca mái parava. Más ê cá pus-me foi com os olhos no palco que 'tava a acabar de tocar o amigo Armando Penteado com um fole emprestado e tudo, qu' ele nã tem nenhum. Diz o apresentador:
- Isto quem nã tem gaita, toca com a do v'zinho. Désna que l' a trate bem e nã na estrague... E olhem qu' o senhor Penteado sôbe estimá-la e fez aqui um belo serviço. Nã gostaram?
Foi ôtra risada... A famila, com coisas destas, enche o papinho. Há semp'e quem ponha maldade no que ôve, 'tá bom de ver...
- E agora, nã sã tocadores de fole, mái tamém foram convindados. Um toca píf'ro e o ôtro toca gaita. Venha o senhor António Nunes com o sê píf'ro e, despôs dele tocar, assuba o senhor Inácio Nunes com a sua gaita de bêços.
O ti Tóino Cruzinha, c'm' a gente l'e chama, lá par'ceu, máo nã trazia nada nas mãs.
- Atã, o qu' é que fez ô sê instrumento, senhor Nunes? Nã me diga que perdé a gaita p'r o caminho...
- 'Pere aí, qu' ele já parêce. 'Tá aqui bem gôrdadinho, qu' ele já é munto antigo e pode-se estragar.
Mái uma risada de tôd's q'ont's 'tavam lá a ver aquilo.
E lá foi tirando o pif'r'salho de drento da camisa, munto bem enrolado num trapinho, c'm' s' aquilo fosse a coisa de maior valor que lá par'ceu. E tenho a firme certeza que, p'ra ele, era mémo.
Diz-l'o apresentador:
- Ah, assim 'tá bem, já nã precisa de pedir a gaita emprestada a ninguém p' a tocar aí uma gaitada...
- Pôi' não, mái vamos lá ver s' a minha inda 'tá em condiçõs de fazer alguma coisa... É qu' ela é munto antiga e já tem munto uso... Ora dêxa cá ver...
Vá mái uma barrigada de rir p' à malta toda. É qu' o ti Cruzinha d'zia aquilo com aquele jêto dele, baxo e compassado, qu' uma pessoa nã se dava contido de manêra nenhuma.
Pôs o ti Tóino Cruzinha lá tocô as três modas no sê píf'ro, qu' é bem pequenalho c'm' mecêas hõ-de já ter visto no retrato qu' ê l'e tirí, tôd's gostaram e a seguir vêo o t' Ináiço Nunes. Tamém apresentô a su gaita e, p'r três vezes, amostrô q'onto é que vale, méme com oitenta e cinco anos em cimba dele.
E assim s' acabaram as modas naquela tarde, já à boca da nôte, mái com a famila toda contente com o belo pôco que tinha passado ali a ôvir mús'ca e espàir'cer com os amigos e v'zinhos.
E p' à Junta dar uma alembrança ôs tocadores, foram tôd's ch'mados ô palco, a Senhora Presidenta falô lá o que munto bem entendeu e despediram-se tôd's até pr' ô ano. E ê cá peço um desejo:
Ô fim, foram tôd's ch'mados ô palco, ôviram o d'scurso da senhora Presidenta e arreceberam uma preçanada de palmas qu' a gente l'e bateu.
- Qu' a gente pr' ô ano, cá 'teja tôd's p' ô XX Encontro de Acordeonistas de Monchique.
E só mái uma coisa. Achí tudo munto bem, foi tudo munto bonito e uma tarde do melhor que pode ser.
Mái, sô franco, s' a Senhora Presidenta nã s' apequentar com-migo, semp'e l'e digo que, p'a pr' ô ano, podia mandar pôr uma coisinha qualquer, méme fraquinha, ali no pano do palco p' àquilo f'car mái bonito.
Qu' isso nã tem emportância denhuma, o emportante é os tocadares virem cá e a famila ir vê-los. Mái semp'e era mái bonito. P' ôs retratos e tudo...
M't'ôbrigado ôs tocadores e à Junta. Dés l'e dê o que precisarem.
E vomecêas, até um dia destes e passem munto bem.
Parente
ResponderEliminarNo Largo dos Chorões, os tocadores de fole deram mesmo vida às tradições!...
Só assim, elas não "levam s'miço" e as cadeiras não "chegam".
~*Um beijo*~
Oi parente
ResponderEliminarPõs tenhe a dezer-le, que desna de sigunda fêra, q'é cá tenhe estade com crusidade de ver os sés retrates e de ler as sús palavras, acérca dest'encontre de tocadôres de fole, aqui de Monchique.
Quás tõdes'anes tenhe ide ver e ôvir e desta vez tamém nã falti.É cá fiz com'amecê, fui cedinhe a ver s'arrenjava um lugarinhe bom.É bem o vi lá com o parente Zé.
Aquile pra mim é advertido, má ó méme tempe dá-me pena de m'alembrar dum concorrente, qu'inda era mé parente, que, no mé fraque ver nã tocava quás nada, má tinha uma grande felecidade em concorrer.Ele era conhecido pre Felipinhe e coitadeco merreu tropelado, pôs gostava bem munto duma cervejeca e com elas no buche deve se ter atravessade nas'trada, sem cuidado...
Dêxemes côsas tristes, qu'a múseca
n'é pra isse...
Passe bem.
O Campaniço
Amigo Campaniço
ResponderEliminarFez vomecêa munto bem em ir ver os tocadores de fole qu' aquilo é uma coisa que dá gosto. Só nã sê q'onto tempo vai durar.
É mái que certo qu' ê tamém o vi a si, mái c'm' nã sê quem vomecêa é, foi o mémo que nã no ter visto.
E p'a s' alembrar do sê parente F'lipinho, aí tem uma parte que se dé com ele e uns retratos qu' ê cá l'e tirí há uns vinte anos, perto ó certo.
A minha pàxão é nã l'e ter tirado nenhum com o folezinho dele.
Munta saúde.