02 fevereiro 2007

Coisas de Morteporque - 2ª pagela

Enchendo os mólhes Com a prática qu' elas têm, im menes de nada, as m'lheres enchem os mólhes tôd's.

Ele hôve uma pessoa, a senhora Ana Ramón, que escreveu aqui umas coisas num c'mentáiro, d'zendo que nã era capaz de ver matar o triste do pórco daquela manêra. E ê cá tenho que l'e dar toda a r'zão. Tem r'zão, sa senhora. Q'ondo a famila tem r'zão, nã se l'a pode tirar...

Olhe, inda hoje em dia ele há cá na serra quem nã goste nada de ver isso e quái tôd's os moç'-pequenos 'té panham até medo com isso, veja lá. A minha Maria, q'ondo era meçalha, tã penas ôvia o pr'mêro gornido, desatava a fugir... uma vez, foi a mãe dar com ela descondida debaxo da cama com as mã's agarradas as orelhas e branca c'm' cal da parede... E, inda méme hoje, ela nã gosta nada de tal coisa.

Mái, p'a quem nã sabe, tamém l'e digo qu' o ad'v'rt'mento da morteporque nã é matar o pobrezinho do bicho. Iss' é só uma parte que se tem que fazer méme descontravontade. O resto é qu' é bom.

C'mer umas besnégas, uma bela assadura ó uns bons piques, bober um casêrinho bem g'stoso ó uns porretes de madronho macio e bem agraduado, charolar, fazer um joguinho de cartas, quem diz ôs três-setes diz ô truque ó ô pôrro, e, coisa que já pôco se vê, um joguinho de pàlito que tamém dá munta influêinça.

Mái atão, o c'stume é este e a famila tem precisão d' arrenjar uma carninha p'a c'mer com a côve e os jantares de fêjão e isso assim... Já nã falando dos mólhes, morcelas e chôriças ó da banha incarnada, torresmos e coisas dessas, que, des que fazem mal - e fazem qu' ê sê que fazem - mái sabem muntíss'mo de bem...

Podia-se era pensar p' aí numa manêra mái m'derna de fazer esse trabalho p' ô animal nã padecer assim daquele jêto, que, d'zer a verdade, dá um coisinho d' empressão, méme a munt's homens c'm' ê cá.

Atando o mólhePondo o mólhe a cozer Os mólhes, à medida que sã' chêos, é só atar e pô-los a cozer no tacho das morcelas.

Inda um dia destes 'tive a cismar nisso e vê'-me à idéa uma coisa qu' eles podiam fazer e, calhando, resolvia-se o caso dôtra manêra. Im vez de pr'ivirem de se matar o pórco, fazia-se ôtra coisa - qu' eles nã pr'iviram as mortesporque, eles pr'iviram foi matar o bicho im casa e tem que s' o levar ô matadoiro.

A Junta ó a Câm'bra, ó fosse lá o que fosse, arrenjavam um aparelho desses de matar os animazes com elec'sidade, que des que há. E matava-se os bichos c'm' fazem no matadoiro. E só despôs do pórco morto é que se l' atanchava a faca matadêra p'a l'e tirar o sãingue.

Isto é uma idéa dum parvo, 'tá bom de ver, mái quem sabe lá se nã saria uma manêra de se dar fêto as coisas sem acabar com este c'stume, mái antigo que sê cá o quem, e, ô méme tempo, nã se fazer sofrer tanto os b'chinhos. E tamém nã s' ir contra a lê, ora essa...

Mái, inda falando da tal morteporque, da parte só das morcelas...

E atão, aquilo, foi c'm' um foguete. Nã demorando nada, já as m'lheres tinham posto os temperos nos tachos das morcelas e jogaram-se a incher os mólhes. Sim, qu' as tripas já 'tavam bem lavadinhas e ali mém' ô queres, à espera que l'e pusessem o picado p'a drento.

O picado tinha sido fêto já lá iam umas belas horas e 'tava ali bem temp'radinho com os adubos qu' a c'mad' Olália des que mandô aviar na Vila, mái nã sê bem adonde, qu' isto já vendem adubos a peso im pôco lado e os que vêm imbalados naqueles saquinhos nã é a méma coisa. Era o qu' elas 'tavam p' ali a tram'lear e ê cá, im tod' ô tempo, tenho ôvido d'zer o mémo.

Com um despacho daqueles, dé-se o caso de, s' ê me descuido mái um coisinho, nã panhar nada de jêto com a mánica dos retratos. Vá lá, qu' inda tirí estes qu' aqui l'es mostro...

Picado das morcelasPicado das morcelas O picado das morcelas leva uma preçanada d' adubos e tem de s' amassar bem...

E logo d' infiada, desataram a tratar dos temperos das morcelas e a amassar o picado. Aí, já tive mái vagar, qu' aquilo tem ôtr's precêtos e leva um coisinho mái de tempo a f'car pronto.

Repáirem no alguidar e vejam bem a preçanada d' adub's que se tem precisão de lá pôr p' àquilo f'car uma coisa tã g'stosa c'm' vomecêas sabem. É c'minhos ôs punhados, cravinho, p'mentão, canela, pimenta, ê sê cá o qu' é qu' elas p'a lá põem más... E sal que nã falte.

É uma parte ingraçada pre mode os funiles fêtos d'a pr'pósito p' àquele serviço. Levam elas ali zuca-zuca com o dedo a impurrar o picado p'a drento da tripa e, d'ora inq'onto, vá umas picadelas com um pregador p'a tirar o ar às morcelas e elas nã arrebentarem no tacho inq'onto se cozem.

E, despôs, as marafadas, ô fazer tal serviço, nã 'tã caladas nem um 'stante... E se vomecêas sabessem o qu' elas dizem, logo viam as carcachadas que davam... Grande parte das conversas ê nã posso d'zer aqui que me dá, béque-me, vergonha, qu' elas 'tavam era já destravadas até mái não. Qu' isto, as m'lheres, em partindem a pêa, já se sabe...

Enchendo as morcelasTirando o ar às morcelasMorcelas cruasMorcelas a cozer As morcelas, q'ondo se enchem e méme ô cozer, têm de se picar com um pregador p'a l'e tirar o ar.

Com tôd's os precêt's ó seja lá c'm' ser, é d'adregue nã arrebentar uma morcelinha ó duas. E mólhes, atã, nã se fala... Mái o que vale é que s' apr'vêta e come-se-os inda quentinhos, qu' é um consolo...

A c'madre, Olália, essa, coitada, lá ia, toda desgostosa, com um prato chê' deles que quái só se via arroz... As tripas tinham arrebentado no tacho, sabe-se lá p'rquem. Calhando, ó foi fogo a má's ó inchêram-nos munto d' arroz e ele inchô... Mái nã se perderam, nã senhora. Aquilo des'parcé tudo inq'onto o diabo esfregô um olho.

Mólhes e Morcelas cozidosMólhes rebentados Q'ondo se tiram do tacho é d'adregue nã 'tarem semp' uns q'ontos arrebentados...

E era horas de tratar das morcelas de farinha.

Aí, toca d' incher o alguidar de farinha de milho, um balde de sãingue invinagrado p'a nã coàlhar, mái um poder d' adub's e vá de mexêr com um colhêrão, p' ô resto dos piques das morcelas que lá 'tavam no fundo se masturarem bem com a farinha.

E vá d' incher os sacos à rôpa toda.

- Tu abres ê cá meto... - D'zia a prima Jôqu'nita, qu' é do mái destraviado que há.

- Nã, ê meto e tu é que abres... - Respondia-l'e a ôtra.

- Atã, s' iss' é assim, ê, despôs, ato e tu siguras e passas-l'e a mão, duma ponta à ôtra, p'a alimpar, que 'tás mái ac'st'mada...

- 'Tá bem, m'lher, seja lá munto bem c'm' tu quêras, mái o qu' ê tenho ôvisto d'zer é que tu é que tens munta prát'ca dessas coisas...

- Olá!... Atã isso só se faz mêa-dúiza de vezes ô ano, no tempo das mortesporque... E já anda assim apregoado?!...

- Ah, sim?!... Nã sabia que fazias isso assim tã pôcas vezes, m'lher... Cudava que sabias mái disso do qu' ê cá...

E nã conto má's que, daqui p' à frente, já tinha que pôr uma rodela incarnada no canto de cimba da folha, c'm' às tel'visõs fazem q'ondo dã' aqueles cinemas qu' os môç's-pequenos nã podem ver...

Amassando as morcelas de farinhaAmassando as morcelas de farinhaAmassando as morcelas de farinhaAtando as morcelas de farinha Uma abria, a ôtra metia. Uma sigurava, a ôtra atava... E, ô fim, passava-l'e a mão p'r cimba p'a alimpar...

E lá f'caram as morcelas de farinha a cozer no caldo moiro, qu' elas, atão, levam um belo pôco até f'carem im condiçõs. É coisa p'a umas quatro ó cinco horas, consoante e conforme o fogo qu' a gente l'e faça p'r baxo. Mái tamém há quem diga que q'onto mái tempo melhor, désna qu' o fogo nã seja munto forte, e despôs se dêxem lá a chocar.

Nôtr's tempos, com aquele caldo que se vê ali no tacho - a gente alomê-ô p'r caldo moiro - fazia-se umas papas qu' era um consolo. Era as papas-moiras. F'cavam era bem munto gordurentas e nã se podiam c'mer im fraqueza qu' elas pegavam na barriga e ó um f'lano ch'mava p'lo grigóiro ó era certo e sabido que f'cava com soltura p'r um dia ó dôs.

Ê cá sô franco, de todas as q'ôlidades de papas qu' ê conheço estas é as qu' ê menes aprecêo. E, hoje em dia, béque-me até já nã há quem use a fazer tal coisa.

Morcelas de farinha cozendoMorcela de farinha Em levandem a cozer umas belas horas, ficam nisto, qu' até uma pessoa se lembe toda...

Uma vez que calhe, pode ser qu' inda l'es fale dôtras partes da morteporque, mái p'r ora já tem àvonde. Ora tem àvonde, já foi de má's e de que manêras...

Atã fiquem-se com Dés e até um dia destes.

3 comentários:

  1. E a cachola, compadre? não marchou?

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  2. Ah, Parente! Só de ver se me enche de água a boca e o colesterol parece subir vertiginosamente.
    Não se pode envelhecer.

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  3. Caro Parente

    Vejo que a tradição da mortepórque pelas bandas de Monchique, ainda se mantem bem viva. Esperemos que as autoridades sanitárias não inventem nenhuma doença marrana a fim de arranjar pretexto para lhe por fim, como já consta por aí.

    Um abaço

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