10 abril 2006

O madronho 'tá bem bom

Adega da Refóias fêta de pedra talisca e barro, há uns cem anos, perto ó certo

D'migo à tarde, tinha-se vindo cedo da missa, o tempo 'tava amoroso, ê disse p' à minha Maria:

- Nã sê o que faça. Isto é dia santo temos que respêtar, as tardes sã grandes, dá-me vontade d' ir ver o madronho e uns vimes que p' a lá tenho ô pé do barranco.

- Vai sim, homem. Leva o Jericó, monta-te a cavalo nele e, na volta, trazes uma carguinha de lenha, daqueles tanganhos de madronhêro qu 'tã lá p'r trás da adega. Ò atão, só se levares uma gòrpelha a trazes umas q'ontas cepas d' urza, que tamém sã boas p'a pôr no fogo.

- Ó Maria, atã nã vês qu' hoje é D'mingo e nã se pode fazer trabalhos desses?...

Bom, ela lá comprendeu qu' ê tinha r'zão e p' ali disse que 'tava bem.

Olha lá, calhando, era melhor ê cá levar aí uma buchazinha, qu' ê, q'ondo c'meço a assubir e a decer cerros, usa-me a dar vontade de comer. C'meça-me logo aqui um bicho a rabear qu' até perco as forças.

E assim foi.

Abalí, levo o Jericó d' arreata, vô-me p'r o caminho de cima, passo à porta do mê compad'e Jôquim do Barranco, ele sentado no pial a esbrugar uma laranja, com um refe qu' ele tem semp'e na alsebêra.

- 'Teja com dés compad'e.

- Venha com Dés.

- Atã adond' é que vai, ô D'mingo, com o burro d' arreata, homem?... E em vez de s' amontar nele, vai a pé? Até o bicho faz pôco de si...

E apresentô a casca da laranja ô mê Jericó. O animal chêrô, alevantô o bêço, amostrô os dentes, bem negros da erva qu' ele come, e, em men's de nada, baldeô a casquinha. Até se lembé', no fim...

- Compad'e Jôquim, vomecêa é qu' havera de gostar de vir com-migo. O serviço qu' ê vô fazer e ô sito adonde vô, sê que mecêa gosta.

- Atã adonde vai? - Diz-me ele, já com o olhinho a luzir.

- Olhe, vô-me à Refóias dar uma olhadela ô madronho. 'Tava ali sem fazer nada, béque-me aborrecido, peguí em mim e cá vô eu. Se qu'ser, venha daí, dá-se companha um ô ôtro.

- Nã 'tá mal alembrado, nã senhora. E calha bem qu' o mê Zé Manel nã vê' cá esta semana, 'tô p' aqui sòzinho com a m'lher. Dêxe-me lá calçar ali umas botas cardadas p'a andar bem lá nos cerros que nã demoro nada.

E, num nadinha, 'tava-se os dôs a caminho da Refóias, más o Jericó, qu' ia à frente, qu' ele sabe bem o caminho.

Foi-se lambareando no qu' a gente s' alembrô, o Jericó, de q'ondo em vez, jogava a boca a um silvalho, naquilo, um casalinho de perdizes a atravessar o caminho. Desandaram logo p' ô lado de baxo, nem avoaram nem nada, haveram de ter o ninho p' ali perto, de baxo d' alguma mongariça. Isto, já prebaxinho da Horta dos Brejos.

Dali a um belo pôco, sem se dar por isso, já se 'tava a descer p' ô lado do barranco. Ôve-se um fole a tocar. E era uma moda bonita, nã pensem. Nã 'tava era assim munto bem amanhada. Mái, no mê daqueles cerros, servia bem.

- Aquilo é coisa do ti Chico Bêço. - Diz logo o compad'e Jôquim.

- Atã, isso sabe-se... Nã mora aqui mái ninguém e o homem 'tá ali sòzinho, tem aquela entretenga. 'Tá bem qu' ele só sabe tocar aquela e mal... É sempre o méme "cerr' abaxo, cerr' acima, cerr' abaxo cerr' acima...", mái dá p'a gente s' ad'vertir.

E daí, calamos-se, qu' a gente ia-se passar ô lado de casa e, s' ele désse p'r a gente, acabava, logo, o toque. Mái nã dé p'r nada. Já a gente ia quái chigando à Refóias, inda ele s' ôvia lá ô longe.

Tã penas chigamos ô nosso destino, pus o Jericó lá nos cantêros, nem l'e tirí a albarda nem nada, tinha lá d'comer à farta - as côves, agora, 'tã todas espigadas nã servem p' a´mái nada senã p' ôs animás - e fomos, logo, caminho dos madronhêros que 'tã naquela chapada voltada más ô Sul, lá p'r trás da adega, qu' sã os que usam a dar melhor madronho.

- Ó compad'e Refóias, vomecêa, este ano, tem aqui uma carga de madronho qu' é uma coisa linda!... - Diz-me, logo, o compad'e Jôquim.

- 'Tô a gostar do que vejo, compad'e. 'Tá bem qu' os madronhêros inda 'tã pequenos e nã podem dar munto. Pôs, eles arderam faz três anos, se nã 'tô em erro, mái 'tá tudo bem rebentadinho e têm umas belas cachotas de madronhos. Nã venha ele p' aí algum má tempo ó fogo ó coisa assim, ôtra vez...

- Volte p'a lá essa boca, compad'e!... Sará assim tanta a desfortuna?!...

E lá andamos, andamos p'r aquelas chapadas, p'r aqueles córgos, foi-se até à chã da pôça de cima, dobrô-se a altura do rasmono, inda s' olhô ôs madronhêros da côrela do mestre Chico Martelo, tudo do melhor. Nisto, alembr'-me do farnel.

- Compad'e Jôquim, vamos más é c'mer qualquer coisinha, qu' ê dêxí o farnel além gôrdado na adega. Pendurí a bolsa naquele pau que 'tá ô mêo, p' ôs ratos nã l'e pegarem, qu' aquilo há além cada larião que parêcem coelhos.

- Mái atã ê nã truxe nada... - Diz-me o mê compad'e, embatucado de nã se ter alembrado disso entes d' abalar de casa.

- Nã s' apequente, qu' ê tenho ali que dá bem p' ôs dôs. Bebida é que nã truxe. Nã contava que vomecê viesse e ê cá, sozinho, nã bebo. Más a gente vai ali à fonte da samôquêra e bebe-se-l'e uma cocharrada daquela água fresquinha ali a correr no mê das aivencas e f'camos sat'fêtos.

Foi-se p'ra baxo, c'mé-se o panito com chôriça qu'ê levava, 'tava uma categoria qu' a minha Maria sabe fazer aquilo bem, bebé-se uma barrigada d' água da tal fonte e charolamos más um pôcachinho assentados ô pé da bica.

Nesse mê tempo, pus-me a olhar p' à bica e as minhas vistas foram atrás do fio da água até ô chão, adonde fazia uma pôça bem pequenalha. Méme assim, ponho-me a olhar bem, lombrigo, lá no fundo, uns coisinhos escuros a se mexêrem.

O qu' é que era? Perto dum quôrtêrão de sapo-sapinhos. Ali andavam tôd's dum lado p' ô ôt', com aquela g'ande cabeça com dôs olhos e o rabo a abanar, quái em cima uns dos ôt's. Aquilo foi uma arrã que vê' largar ali os ovos e os b'chinhos ali 'tavam.

S' ê calho a levar o mê Jericó p'a b'ber lá é que 'tava o diabo. Ele, q'ondo vê alguma coisa na água, já nã bebe. É munto com'chôso. Más ele, tamém, levô a tarde a c'mer côves, nã tinha sede nenhuma.

Com isto tudo, já o sol tinha estraposto p'r trás do vertente do cerro, mái nã era tarde. Inda fui aconchegar uns mólh's de vimes qu' ê tinha cortado, a ôt'a semana, nuns vimêros que tenho lá no barranco e demos ordem de partida. Foi uma tarde bem passada.

P'ra cima já o ti Chico nã tocava, as perdizes já 'tavam amalhadas, o sètestrelo e a estrela d'alva c'm'çaram a luzir lá no astro, já era lusco-fusco. Inda par'ceu um luzicuco ó ôtro e, ô longe, lá p' ô lado da Córga da Murta, soô um mocho - uuh!, uuh!... - quái c'm'a qu'rer meter medo à gente.

O jericó nã fez caso dele, nem as orelhas espetô. Béque-me 'tava com más cudados era de nã embicar numa pedra que 'tá lá no mê do caminho, numa parte munto embargosa logo pracàzinho da Horta dos Brejos, em par dos Tramecilgos.

O pobrezinho, a pr'mêra vez que lá passô, logo q'ondo o comprí, ia dêxando lá uma ferradura. Embicô com a uma mão, p'a nã se dêxar ir ô chão, dé um pulo, nã salvô bem a pedra, encalha com o rompante da ôtra ferradura duma pata de trás, até fez faísca... Mái nã caíu.

Nunca mái se desqueceu. Agora, q'ondo se passa lá, arrada-se sempre de manêra a nã l'e tocar. Inda dizem qu' os bichos nã pensam. Ai nã pensam...

E atão, q'ondo dêxí o mê compad'e em casa, já tinha anoitecido dum todo. Más aquilo é perto do mê monte e bom caminho, foi um 'stante. Mal dí sobiado uma moda qu' ê gosto munto de sobiar q'ondo vô a chigar a casa, qu' é a manêra de dar de vaia à minha Maria, e 'tava à ponta da rua.

Nessa altura, já a minha barb'leta, uma canita que me deram ontordia, tinha dado sinal e vê' lgo a fugir s' empinar a mim.

- Ó barb'letinha, venha cá b'chinho, venha... Ai que bela canita... - Disse-l' ê cá. E passí-l'e a mão p'r o cachaço. E o rabinho dela par'cia uma aventoinha a abanar...

Despôs disto tudo, já me sentia um coisinho maçado, mái lá fui desalbardar o Jericó, inda passí p'r a casota dos coelhos, más a minha Maria já tinha tratado deles, olhí ô pórco tamém já 'tava tratado, entrí em casa.

Vêo-me logo um chêro a quem-mado. Pensí: - Já entrô aqui o bispo...

Digo:

- Maria, atã que chêro é este?

- Ai, homem, atã nã dêxí quem-mar o d'comer?!... Fui tratar dos animazes, q'ondo voltí, 'tava tudo em cravão...

- Atã e agora o qu' é qu' a gente cêa?

- Só ser um resto de côve negra que sobrô a noite passada...

- Sim, m'lher, nã te mortifiques lá p'r ca'sa disso.

E assim acabô o dia. Mái f'quí encrençado com os madronhos. Se nã haver nada a contre, este ano quero fazer uma bela aguardentinha.

Atã até ôtro dia.

1 comentário:

  1. Queria apenas manifestar a minha leitura assídua deste seu simpático blog, e o desejo de, além do retrato do quotidiano das lides do campo, ler histórias de locais belíssimos da encantadora vila de Monchique, que não mais existem, mas que permanecem na memória de quem com eles outrora se maravilhou, como seja o caso da Quinta de S. Sebastião ou o
    Convento de Sta Catarina.
    Um enorme bem-haja.

    ResponderEliminar

Obrigado por visitar e comentar "O Parente da Refóias"