07 outubro 2006

Marmelete: Uma Descasca à moda antiga

Descasca - Marmelete

Nôt's tempos, era assim que se descamisava o milho. À mão e com uma faquinha p'a dar um golpe na fatana...

- 'Teja com Dés compd'e Refóias. Tal vai isso, hoje?

- Venha com Dés, c'pad'e Jôquim. Eh'q, isto p' aqui se vai indo. Nã se pode a gente quêxar munto...

O mê compad'e Jôquim do Barranco nem me dêxô acabar a minha repla, salta-me, logo com esta:

- Atã, des qu'a descasca de Marmelete só é amanhã à nôte... Ê béque-me par'cia que mecêa tinha dito qu' era logo hoje...

Isto passava-se na bésp'ra da descasca. O mê compad'e é munto desquècediço e já 'tava a atribuir o qu' ê l'e tinha contado, faz três ó quatro dias.

- Ó homem marafado, atã ê cá nã l'e disse qu' era no D'mingo â noitinha, aí das oito em diante... Nã faça marafundas qu' os homens dexplicaram isso bem.

- Olha, que esta!... Agora, já disse à minha C'stóida, ela 'tá fazendo conta p'ra hoje. Tenho que l' ir d'zer qu' é só amanhã. E ô mê Zé Manel tamém, ver s' ele alcança lá a gente p'a nã se ter qu' ir a pé...

O mê compad'e andava tã influído com aquilo que, p'r ele, era a toda a hora. E, p'a ser franco, nã era caso p'a menes, qu' ê tamém 'tava em ferros p'ra ir ver c'm' àquilo era. É qu' a Junta já é a t'rcêra vez que faz descascas e tanto ê cá c'm' o mê compad'e, inda nunca se foi lá vez denhuma.

Da pr'mêra béque-me nã sabemos a tempo e horas. Da sigunda já nã m' alembra o perquém da gente nã ir, mái foi p' aí quasequer coisa que se passô que nenhum ido. Mái, desta vez, nã havia coisíss'ma nenhuma que estrovasse a gente d' ir ver uma coisa tã emportante.

E, no ôtro dia, qu' era D'mingo, lá se foi tôd's - com as m'lheres tamém, qu' a gente nunca as dêxa f'car em terra. Enché-se a barriga logo entes d' abalar, e, ali à tardinha, com o sol já a baxar, ainda aí a umas duas horas dele se pôr, ó nem tanto, lá se foi caminho da descasca.

Tã penas o Zé Manel aparô o carro lá no Largo, assim fui logo com o mê compad'e Jôquim, ver c'm' é qu' aquilo 'tava lá p' ô adro, qu' era adonde eles d'ziam que faziam a descasca. E, olhe, já lá 'tava um moitão de maçarocas...

Descasca - Marmelete Descasca - Marmelete Descasca - Marmelete

Q'ondo lá chiguí, só lá 'tava um moitanito de maçarocas, más inda faltava vir duas caminetas delas...

Joguí a mão a uma maçaroca, puxe-l' a f'lhêrasca p'a trás, que belo milho... Destas q'ôlidades d' agora, 'tá bom de ver, mái uma coisa em bom.

- Ó compad'e Jôquim, olhe bem p'a esta classe...

- Veja lá se, q'ondo a gente sameava aí milho do nosso nos cantêros quái tôd's, se s' arrecolhia maçarocas destas...

- Lá nisso, dô-l'e a r'zão toda. Mái tamém, alembre-se duma coisa. Sab'rôso c'm' àquele, desse tempo, já nã há. Aquilo, bem moìdinho, dava umas papas, uns bolos-de-lar... e, bem aferventado, c'm' à minha Maria e a c'madr'e C'stóida sabiam, dava uns jantares qu' até a gente se rapimpava todos...

- Olhe, até dele assado, q'ondo as maçarocas inda 'tavam tenras, ê cá gostava...

- Atã e nã s' alembra, q'ondo a gente inda era môç's-pequenos, lá no sê alpendre, ô pé do fogo, fazia-se frêras e c'mia-se... Tudo era bom naquele tempo, home. Agora é qu' os môces nã há nada qu' eles gostem. Têm fartura de más, é o que é...

'Tava-se a gente nesta conversa, parêcem mái duas caminetas chêazinhas de maçarocas p'a descarregar e a famila dá em s' apròchigar p'a c'meçar a descascar nelas.

Volt'-me p' ô mê compad'e e digo:

- 'Tã com munta pressa, mái, p'a esta casnastra, quem põe a pr'mêra maçacoraê cá. Quer ver?

E puxo da minha faquinha, jog'-me a uma maçaroca das bem grandes, dô-l'e um golpe na fatana, puxo-a p'a um lado e p'a ôtro, cort'-l'e o talicão e, em men'es de mê minuto - qual o quem, munto menes - já 'tava drento da canastra a luzir de marela que era...

Descasca - Marmelete Descasca - Marmelete Descasca - Marmelete Descasca - Marmelete

Desatô tudo cá com uma fé a descascar maçarocas, punhana!...

Más olhe qu' havia menino que tamém já 'tava bem encaminhado p'a estrear as canastras deles...

Diz o mê comp'e jôquim:

- Ó c'pad'e, mái atão, a gente vêi' pr' aqui e assim se f'cô, nem tampôco se foi b'ber um calcesinho dela ali ô café nem nada...

- Atã o qu' é que mecêa quer, isto calhô assim. Mái nã s' apequente que 'tá-me cá a par'cer qu' a famila da Junta, nã tarda nada, há-de dar aí uma rodadinha à gente tôd's, qu' eles é tudo pessoal que gostam de fazer o papel deles bem fêto...

- Calhando... E olhe, tem jêto, qu', inda agora, lombriguí ali p'r entremê da porta e vi-os lá drento de casa a mexerem numas garrafinhas e nuns tab'lêralhos de bolos...

- Aí 'tá... Tenho a firme certeza que 'tamos aqui 'tamos a molhar a goéla...

E lá se foi descascando mái umas q'ontas maçarocas, qu' a gente nã tinha míngua d' olhar p'a elas p'a fazer o serviço. Com a prát'ca de tantos anos que se tem, até d' olhos fechados se descasca milho...

Pôs, aquilo, nã tardô cinco minutos. Ê 'tava assim de costas, virado p' a Norte, p' ô lado da porta, e o mê compad'e Jôquim ô contráiro. Conforme jogo uma maçaroca p'a drento da canastra e panho ôtra do chão, passo com as vistas p'r a cara dele, até os olhinhos l'e luziam...

Digo p'r mim:

- Isto é obra da garrafinha de madronho que já vem aí a caminho...

E, c'm' quem nã quer a coisa, olhí assim de esguelha p'r cimba do ombro, vi logo o que se tratava. Mái nã l'e disse nada a ver o qu' é qu' ele fazia.

Nã demorô um foguete, ele p'ra mim:

- É c'padre, aí vêm eles!... Olhe! E tamém trazem p' às m'lheres... Aquil' àlém na ôtra garrafa é melosa.

- Mái atã, mecêa 'tava já p' aí com uma bela sede...

- Nã que nã havera de 'tar... Logo, qu' ê tinha posto à idéa de s' ir bober um porrete ali ô café, entes de vir p' aqui, nã se foi. Despôs, com este pó que s' alevanta aqui da fatana as goélas ficam secas duma tal manêra qu' um home até custa a engolir o cuspinho...

- Cá p' ô mê lado até um cabelo de charrafa já me vêo parar aqui à boca...

O certo é qu' eles puseram-se a dar umas copadas a tôd's - madronho p' ôs homens, melosa p' às m'lheres - más esta parenta, ali do Vale d' Água, nã quis cá saber da melosa. Vá, más é um calcesinho dela... Minha bela amiga, qu' é moça dos mês tempos, assim é que é!...

Descasca - Marmelete Descasca - Marmelete Descasca - Marmelete Descasca - Marmelete Descasca - Marmelete

Nenhum se negava a bober uma copadinha e c'mer um pedacinho de bolo...

'Tá bem qu 'ela fez-se forte e emborcô o copo tudo duma golada, mái, despôs, béque-me l' e dé no gôto, qu' o madronho 'tava forte e, calhando, tocô-l'e nos gragomilos.

E, p'a tapar, vinha tamém uns tablêrinh's de bolos-d'-alforge e ôtr's qu' ê cá nã sê alomear. E nã cudem, o mal foi eles c'meçarem. Dali p' à frente era, cada vez im q'ondo, uma rodada.

E sô franco, nunca vi nenhum se negar. Era eles despejarem e assim havia logo um freguês qu' o emborcava. E caretas tamém ninguém fazia. Só s' alguma m'lher p'a trocar as voltas à gente. Qu' elas gostam, mái nã querem qu' os ôt's saibam...

Ora com um tratamento destes quem é que nã havera de trabalhar à rôpa toda. Aquilo, era uma rasmalhada das f'lhêrascas qu' até dava festa. E o más que s' ôvia era as maçarocas descascadas a cairem drento das canastras.

Já nã falando, isso sabe-se, do tocador de fole que nã aparô nem um 'stante enq'onto o serviço nã f'cô todo fêto. O homem tocava... era uma atrás da ôtra sem despegar. E 'tá quái nos noventa. O que faria s' ele t'vesse trinta ó q'ôrenta c'm' alguns que p'r 'í andam...

P'r mode isso, alembrí-me duma qu' ôvi lá. Vô-les contar, só aqui pr' à gente, mái nã digo quem foi, qu' é c'm' o ôtro que diz: conta-se o milagre, mái nã alomea o santo.

D'zia um:

- Nã ôves, mái atã p' ô homem tocar assim tantas seguidas, aquilo, há-de ser a Junta que l'e paga e bem pago...

- Que jêto?!... Dinhêro dava ê cá p'a nã no ôvir, q'onto más inda l'e pagar...

- 'Tás parvo ó quem?... Atã isto tinha alguma graça se nã fosse estas lindas modas qu' o homem 'tá tocando... E inda te digo más. Ele nã ganha nada p'r este trabalho todo. 'Tá ali de livre vontade. T'maras tu l' e chegares ôs calcanhares...

Isto era uma conversa fêta debaxo de cagaçal, já se vê, qu' o tocador toca qu' é uma classe e, inda p'r cimba é o tal homem das engerócas, que 'tá semp'e pronto p'a tudo. E festa qu' é festa, im Marmelete, nã passa sem ele.

Nesse entrementes, só se via era os homens a acartar canastradas de milho - e tamém algumas m'lheres... - p'a drento da camineta, qu' aquilo foi um vê se t' avias até a incherem.

Descasca - Marmelete Descasca - Marmelete Descasca - Marmelete Descasca - Marmelete Descasca - Marmelete

Cada qual fazia o que podia. Uns levavam as canastras sozinhos, ôtr's ôs pares...

E, deste jêto, um serviço qu' era p'a demorar até à hora da fadista chigar, acabô-se quái uma hora entes. Lá teve o tocador de se jogar ô fole dar mái umas tocadelas... Más aí, a coisa já era ôtra, qu' os guitarristas puseram-se a acompanhá-lo e aquilo quái que par'cia uma orquest'a a dar um concerto...

E inda bem. Assim, toda a famila, já com o servicinho fêto, se pôs a escutá-lo com más atenção, a c'meçar p'r ôtro grande artista na arte do calçado, um coisinho mái velho, pôco, qu' ali 'teve, toda a nôte, a desfolar maçarocas.

O homem gosta tanto d' ôvir tocar fole - e nã tem má gosto, lá isso não - que f'cô ali espècado, assentado no sê banquinho dele, que nem tempo teve de f'char a faquinha e gôrdá-la na als'bêra. Bençoado...

Descasca - Marmelete Descasca - Marmelete

Dôs artistas dôtr's tempos, ajuntaram-se na descasca de Marmelete. Um, tocador de fole com jêto p' às engeròcas, o ôtro, sapatêro c'm' nã havia...

Com isto tudo, lá se fazeram horas da fadista ir p' ô palco.

- Ó c'pad'e Refóias, mái atão já se 'tá aqui há um belo pôco à espera da fadista, sará qu' ela nã vem ó quém?

D'zia-me o mê compad'e Jôquim, pensando já qu' a festa nã tinha nada em acabar ali, sem mái nem men's.

- Nã tenha medo qu' eles anunciaram, ela há-de par'cer. E, más a más, qu' a famila 'tá aqui toda embasbacada à espera, é que sabem qu' ela vem.

- Calhando, foi p' aí c'mer alguma coisinha e inda nã fez a digestã...

- Olhe lá, vamos más é ver s' eles têm p' ali algum r'stinho de madronho, daquela garrafa do Presidente, que, nesse mê tempo, a m'lher há-de chigar.

Mái jã nem se precisô disso, qu' inda mal ê tinha acabado de falar, já 'tava tudo a olhar assim ali p' ô lado de lá. Vi-se logo qu' havera de ser a fadista a chigar. E era.

Desata tudo a bater palmas. Ela a agradecer, a pôr assim a cabeça p'ra baxo e p'ra cima, lá vai caminho do palco, mái atão, com uns sapatos de tacão alto e bem alto, foi uns trabalhos p'a dar assubido até lá. T'veram qu' a sigurar bem sigura, q'ondo não inda s' afiturava a cair p' ali da escaida...

Era uma mecinha novinha, bonita c'm' há pôcas, inda p'r cima, cá de Monchique. E c'm' é qu' ela canta!... Cale-se aí... Nem boa parte dessas que parêcem na t'l'visão e já com discos p'r 'i à venda, l'e chegam ôs calcanhares.

E o que l'es posso d'zer é qu' a famila f'cô tudo de boca aberta, insampados, a ôvir uns fados do melhor que pode ser...

Ó se nã f'caram tôd's, ê cá poss'-l'e afiançar que f'quí e quái que nã dava acraditar qu' em Monchique havesse uma fadista qu' é uma classe e novinha qu' ela é. Tenho a firme certeza - assim ela quêra, e os pais - qu' inda vai dar munto que falar...

Descasca - Marmelete

F'cô-se tôd's a saber qu' em Monchique há uma fadista que vai dar que falar...

Ô certo, ô certo, é que palmas era até mái não. E ir-se alguém imbora, era o que faltava... Méme q'ondo ela acabô inda desataram tôd's a arrulhar "ôtra, ôtra, ôtra!..." qu' ela nã teve ôt' reméd'o senã ir cantar más um.

E, em acabando esse, qu'riam más ôtro, que nã na dêxavam ir imbora. Mái aquilo já era um coisinho assim p' ô tarde, calhando aí das onze p' à mêa-nôte, e tinha-se tôd's qu' ir cada qual p' ô sê monte, que, sigunda-fêra era dia de trabalho.

Olhem bem c'm' o pessoal 'tava lá todo ensampado a ôvir fados e semp'e à espera de más um:

Descasca - Marmelete Descasca - Marmelete

A famila 'tava tudo embasbacado a ôvir fados e, ô fim, nã se qu'riam ir imbora...

E com respêto à descasca nã sê o que diga más.

Foi uma festa do melhor, fartamos-se de rir e d' ôvir mús'ca, foi-se b'scar coisas antigas e só me dá pàxão das maçarocas nã serem despejadas na êra, cada canastramoitão, e, despôs, bem espalhadas ô sol p'a secarem. Olhem que dava ali um almêxar qu' até a gente arregalava as vistas...

P'a nã falar, uns dias despôs, na des-sabuga, que se levava ali noites e noites ô serão a esfregar as maçarocas com metade dum sabugo p'a l'e tirar os bagos de milho todo até ô ùlt'mo...

Más isso nã pode ser, qu' agora os tempos já nã sã os mémes, e já munto bom foi ele ter havido a descasca. Que bem se pode agradecer ôs donos do milho, à Junta de Freguesia de Marmelete e tôd's os que trabalharam p'ra isso.

E p'a arredondar isto, que vai comprido demás, só l'es tenho a pedir desculpa de tanto palêo e tant' ô retrato, mái tenham pacência qu'a famila gosta de par'cer na internet...

Aqui fica más um retrato com um grilinho que p'r 'lí andava, mê emparv'tado, sem alcançar o que l'e tinha acontecido. Já nã via canôiras e nã sabia do buraco dele p'a s' esconder... Mái, dêxem lá, qu' ele, a estas horas, já arrenjô casa nova e, sabe-se lá, alguma namorada ali d' ô pé do Povo.

Descasca - Marmelete

O pobrezinho do grilo 'tava c'm' parvo. Nã via canôiras nem sabia do buraco dele...

S' haver quem quêra ver o resto dos retratos, fazendo favor, acalque aqui - ver retratos - e veja à su vontade todos q'ontos quêra.

E nã se desqueçam de fazer uns comentàir'zinhos...

Dés l'e dê saúde e até um dia destes, mês belos amigos.

4 comentários:

  1. Nunca me esqueço de aqui vir comentar, esteja descansado Parente!:):):)
    Muito gosto eu do seu paleio:):):!

    Lembro-me de assistir a uma desfolhada, há muitos anos, lá para os lados da terra dos meus avós...Algoz.

    Do milho gosto muito... papas, milho cozido, pipocas...

    De fatana lembro-me das camas da minha bisavó e avó paternas.

    Lembro-me de nelas dormir. Todos os dias tinha de ser dada volta ao colchão de fatana...Havia tempo para tudo, tirar lençóis, sacudi-los, arejar o colchão de fatana, voltá-lo e fazer a cama com todos os requintes.
    Ninguém sofria de alergias (não sei porque seria...), todos os anos havia colchão novo (talvez fosse por isso)...

    Esta descasca à moda antiga foi uma descasca bem divertida, só podia ser, foi em Marmelete, terra onde muita coisa boa acontece!

    ~*Um beijo*~

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  2. Amigo parente

    Cada vez fico mais embasbacado com as suas reportagens - inclindo os retratos (pela foto do grilo deve ser uma retrateira das valentes).

    A descasca (na minha terra "desbulha ou desencamisa da maçaroca")era samelhante. Feita à noite até altas horas muitos(as) ficavam ali a dormir sobre o "cascabulho".
    Eu gostava era de moer o milho numa mó manual. A farinha do milho era a broa e o "carolo" era para as papas.

    Cumprimentos aqui da Raia.

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  3. É um gosto, Parente, saber dessa vida comunitária tão intensa. A toda a hora se revivem tradições populares nessas terras de Marmelete e Refóias.

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  4. Passei para ver esta agradável e sempre interessante página, onde me delicio nesta madrugada, e também para desejar bom fim-de-semana. Parabéns pelo blogue e pelo artigo que tanto apreciei.

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Obrigado por visitar e comentar "O Parente da Refóias"