06 junho 2007

A Mercêria

Mercearia
Mercêrias destas já quái que nã há p'r 'í nenhuma...

Mercêrias destas já é d' adregue se ver alguma, mái ê cá sê muntíssemo de bem adond' é que fica esta. E, atão, alembrí-me de l'es falar dela premode uma coisa. D'zer a verdade, ele é até mái do que uma, qu' isto coisas d' ôt's temp's têm semp'e munto p'a contar.

Olhe, a pr'mêra é logo qu' a m'lherzinha qu' era a dona dela já cá nã 'tá - Dés a tenha im bom lugar - e foi semp'e do mái mê amigo que possa ser, no bom tratar, 'tá bom de ver. E cá o Parente f'cô-l'e a dever muntas obrigaçõs e nunca l'e sai da mimóira.

Se nã fosse ela, hoje nã l'e dava apresentado aqui, tanto se faz a balança c'm' os cop's d' af'rir, que foi ela qu' os comprô e os dêxô cá, ac'm'dados drento dum cestinho de verga que já tem uns belos anos. Invernizadinho e tudo.

Pôs atão, repáirem bem nesta balança...

Nã sê os anos que tem. Mái que tem muntos, é certo e sabido. P'a tirar temas, só é preciso olhar p'ra ela com olhos de ver... Inda, ontordia, se falô no caso. 'Tava ê cá mái o parente Cosme, ali na venda, a se b'ber uns solvinhos, qu' ê tinha-l'e vendido umas bejoarias p'a ele levar p' à praça e, tã penas voltô, vi-me e vêo-me logo pagar.

De manêras que, 'tava-se cá fazendo as nossas contas, assim ali àquele cantinho da venda ô pé da porta da mercêria, cada qual com o sê calcesinho dela na mão - um mosquitinho, que dos grandes nã pode ser premode eles, qu' andam aí semp'e na estrada à cata disso...

Mercearia
Seja adonde seja, tamém já nã se veêm muntas balanças destas, nã senhora...

Nisto, o parente Cosme da Quinta, põe-se a olhar, munto emprensado, p'a drento da mercêria, p'r a fresta da porta, que 'tava só incostada. C'm' o homem nã tirava os olhos de lá e ê nã via nada, que 'tava de costas, tive que l'e prècurar:

- Parente, mái atão o qu' é que 'tá p' aí a lombrigar, que pôs os olhos àlém p'a drento nunca más olhô p'a mái banda nenhuma?...

- Cale-se aí, parente, 'tô a ver ali uma coisa que já nã via faz bem munto tempo. E, calhando, já nã há mercêria denhuma cá im Monchique que tenha daquilo.

- O qu' é que sará que vomecêa lombrigô p' aí...

- Atã nã vê aquela balança ali?!... Aquilo é coisa que já nã se usa... Ê cá, p'r menes, p'r donde tenho andado - e mecêa sabe qu' ê vô-me a bem munto lado - nunca vi tal coisa...

- Atã, mái nôt's temp's, era o que havia. E nem tõd's tinham...

- Eh'q, mái aquilo, agora, já nã serve de nada... Há-de 'tar ali só p' à famila ver. E coisas daquelas já nã hã-de ser de lê. Inda eles panham alguma murta de terem aquilo ali...

- O quem?!... Nã é de lê?... Ai nã é de lê... Inda nã sê q'ondo, ê vi o af'ridor 'tar ali a fazer exp'rimentaçõs com ela a ver se 'tava certa...

- E 'tava?

- Se 'tava ó se nã 'tava, nã sê, mái qu' ele, ô fim, pegô num pontêralho e num martelo que trazia e pôs-l'e a marca ali naquele selo de chumbo, isso pôs.

- Sará o qu' eles l'e chamam o cunho?...

- Calhando... Más, ê sê pôco disso. É uma marca im c'm' foi 'speccionada. O que vi foi ele, a seguir, vir cá p'ra fora, passar um papel e arreceber nã q'ontos eros foi.

- Ah, atã assim, 'tá legal e pode pesar à vontade... Qu' isso aí, ê conheço qu' é assim.

E dig'-l'es, já fui deslindar bem o caso e a balancinha 'tá a foncionar do melhor e pode pesar tudo o que seja preciso que tem l'cença p'ra isso. E inda pede meças às qu' eles, agora, têm pr' aí, daquelas que parêcem um comp'tador...

Copos de aferir
Um é o maior de tôd's, leva um litro. O ôtr', o mái piquenalho, leva das cem partes uma...

- Parente Cosme, más inda l'e digo ôtra.

- Olhe lá, nã se desqueça do que 'tava d'zendo, mái entes disso, nã saria melhor a gente l'e beber mái um calcesinho cada um?

- Calhando, até se b'bia... Isto 'tá quái na hora da bucha e semp'e ajuda a abrir o apetite. Que fastio é coisa qu' ê cá nã tenho, mái vã lá...

- Ó minha senhora, ponha lá aí mái dôs, fazendo favor...

- Dos piquenalhos!...

- Mái, inda voltando à conversa, o qu' é que vomecêa ia d'zendo?..

- Ah, é verdade... Ia-l'e ê cá d'zer qu' a antiga dona desta casa - que Dés tem - uma ocasião, amostrô-me uns cop's qu' ela tinha ali - coisa bonita!... - tôd's cada qual da su medida.

- E p'a qu' é qu' ela qu'ria isso, home?

- Aquilo des qu' era obrigatóiro ter nestas casas... Tinham que ter désna do maior, que levava o litro, até ô mái pequeno, que levava das cem partes uma!...

- Ah, um centilitro...

- Sa senhora, era isso. Mandavam-nos vir lá da fábrica da Marinha Grande. Aquilo vinham tôd's com a su graduação marcada ali de lado e nã havia confusã denhuma. O que 'tava ali é que era... Que no vrido nã se dá fêto malandrice, nã l'e parêce?...

Copos de aferir
Désna do mái pequenalho até ô de litro, aí 'tã eles...

- Munto gostava ê cá de ver isso...

- Dêxe 'tar qu' ê logo peço aí à famila, um dia que se tenha os dôs vagar, qu' eles amostram isso à gente.

- Atã, veja lá isso, parente Refóias...

- 'Teja descansado qu' isso arrenja-se. Ê dô-me com esta famila já há bem muntos anos e eles nã se negam a uma coisa dessas.

- Olhe lá, às tensas disso, venha lá aí mái dôs...

- 'Pere aí parente... Atã inda ê cá nã bobi este...

- Se nã b'bé, b'besse... Vá, emborque-o lá qu' é p' à impregada o incher ôtra vez...

- Isto nã sará demás?... Olhe qu' ê cá inda tenho uns servicinhos a fazer, esta tarde...

- Nã tenha medo que nã perde o serviço... E esta tamém é fraquinha... Já sabe qu' eles, nas vendas, eles usam a baptizá-la com um coisinho d' água...

- Ê sê cá... Ela, béque-me, já me 'tá é a chigar aqui à cabeça...

- Isso é premode vomecêa 'tar de barriga vazia. Em l'e metendo uma buchazinha, fica que nem dá p'r ela...

- Isso é o que mecêa diz, mái quem é que vai p'r mim regar uma tãincada d' água qu' ê tenho ali na presa...

- Ó homem, nã l'e dê cudados... Isso, mecêa chega ali num pôcachinho, tira-l'e o tempadroiro, dêx'- à de tornêrada, im que 'stantes rega mêa-dúiza de quadras...

- Ai, mêa-dúiza... Aquilo tem munta água... Dá-me p'a regar alguns dôs cantêros...

- Olhe lá, desvia-se metade da água, inq'onto vocêa rega o de cima ê rego o debaxo.

- Essa conversa já nã tem munto jêto... Atã nã vê que, méme de pancada, nã vem água que dê p'a dôs ô méme tempo...

- Nã dá o quem!...

- E inda tem más ôtra, ê cá gosto de regar a minha manêra, com pôca água qu' é p'a ela nã me levar a terra toda dos quebradoiras e incher bem as casêras. Fica p' a ôt'a ocasião...

E, lá se foi, lá se foi, f'camos assim combinados, despedim's-se e cada qual desandô p'a sê lado.

Copo de aferir
Vejam lá s' eles sã ó nã sã de lê... Tôd's têm a marca...

Mái, c'm' ê cá tinha p' aqui estes retratos, dé-me p'ra l'os amostrar a vomecêas e, atão, é o que 'tô a fazer. Qu' ô mê parente Cosme que nã tem comp'tador, logo peço lá à famila ó, atão, trague-o aqui à minha casa, tã penas possa ser.

Come-se-l'e aí um coisinho de chôriça, ó coisa assim, inceta-se um garrafanito dum casêrinho qu' o mê amigo Hortêncio me dé, a semana passada - ele trôxe-me dôs, más um já envaziô dum todo - e amostro-l'e esta coisa da internet, qu' o homem tamém há-de gostar de ver isto aqui.

E é, calhando, o mái certo qu' ê vô-me fazer.

Nã era p'a prantar aqui o tal cestinho de verga da senhora Celize, qu' os copos vêem-se mal premode o imbrulho, mái pus-me a olhar bem p'ra ele e dé-me assim, béque-me, remôrsos daqueles tempos qu' ela era viva e os punha ali tã bem ac'm'dadinhos, imbrulhados im papel, e nunca se partia nenhum. E olhem que eles sã uma dúiza...

E ela, qu' há-de 'tar lá im cimba a ver isto tudo, tamém há-de f'car contente da gente s' alembrar e ter sôidades de q'ondo ela cá 'tava p'r este mundo.

Passe bem, minha bela amiga e Dés l'e pague.

Copos de aferir
A dona estimô-os cinquenta anos. E dêxô-os ac'm'dados neste lindo cestinho de verga...

E pr'a vomecês tôd's, fiquem-se na paz e até qu' a gente se veja.

3 comentários:

  1. E os fiados parente?
    Será que ainda há fiado nessas saudosas mercearias?
    As mesmas funcionavam assim como um espécie de banco em conta corrente, só que ninguém cobrava juros. Ia-se pagando como se podia!
    Agora chegou os Hipermercados, e o dinheiro de plástico, resolveu o problema! Ou melhor, agravou o problema, estamos todos a pagar juros, proibitivos, e cada vez mais com a “corda na garganta”.

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  2. Olá amigo!
    Cá estou a renascer das cinzas como a Fénix.
    Fiquei de novo presa à qualidade deste trabalho de recordação e saudade. Ainda não li os anteriores que vou fazer agora.
    Até já
    Um grande beijinho e obrigada pelas simpáticas palavras.

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  3. Ainda bem que registou o aspecto de uma autêntica mercearia, consigo quase sentir o cheirinho que lhes é tão característico.
    Os copos de medir porções são muito engraçados, e será com certeza uma raridade encontrar-se um conjunto completo!
    É uma pena que cada vez se encontrem menos espaços deste tipo, onde reinava o convívio entre vizinhos, e a ida às compras tinha outro encanto.

    Um beijo para si e para a sua Maria!

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