04 setembro 2007

Caminho de Santiago - A abalada do Porto

Abalada do Largo da Sé - Porto
À abalada do Porto, quem havera de pensar o que l'e esperava p'ro Caminho...

D'zer a verdade, à abalada do Porto, qualquer um, c'm' ê cá, que nã conhêça, nã faz uma idéa, pequena que seja, do que l'e espera p'ro caminho. E, atão, abala-se tôd's contentes e c'm' s' aquilo fosse ir daqui até ali ô Pé da Cruz...

Más a coisa tem mái que se l'e diga e ê dig'-l'e já: ó uma pessoa 'tá fêta a andar p'r caminhos ruins e uns belos pôcos ó atão é d' adregue dar chigado ô fim da viaja. E calhando a 'tar com alguma dor ó com um calo trilhado ó coisa assim, é tirar daí o sentido...

Pôs, naquele dia, logo bem de manhãzinha, abalí da casa do mê amigo Jôqu'nito - qu' ele até é que foi alcançar no carrinho dele - e foi-se caminho do Largo da Igreja da Sé do Porto, qu' era adonde eles tinham mandado ê cá 'tar aí das sete da manhã im diante.

E fiquem já sabendo que, dos qu' iam andar a pé, inda nã tinha par'cido nem um. Fui ê cá o pr'mêro. E aquilo fazia lá um navoêro que duma ponta à ôtra, nã se via nada. Logo, inda pensí:

- Mái atão que conversa é esta, hom?!... Querem lá ver qu' ê cá fiz p' aí confusão com o lugar da abalada e nã sará aqui?!... Lá serem eles a me fazerem a falseta, nã há-de ser...

Mái, nesse mê tempo, o Jôqu'nito já tinha lombrigado umas meçalhas todas bem vestidas com umas rôpas brancas e incarnadas, que par'cerem ali nã dê d' adonde, e ê cá prècuri-l'es logo, munto limpêro:

- 'Tejam com Dés, minhas meninas. Atã vomecêas nã me digam que tamém 'tã aqui p'a abalarem p'a Santiago?...

Na Rua de Cedofeita prê adiante - Porto
A Rua de Cedofeita 'tava quái toda p'r nossa conta...

- É verdade que 'tamos, mái a gente vai é dar uma ajudinha àqueles que terem precisão. Nã se vai fazer o Caminho a pé.

- Munto bem me calhô!... É qu' ê cá dí p' aí o nome p'a tamém ir, mái atão, inda nã abalí e já 'tô p' aqui coxo duma perna, com uma dor no incaxe do joelho...

- Nã me diga... Atã e vai abalar p'a Santiago assim num estado desses?!...

- Isto nã há-de ser nada... E se vomecêas me darem aqui uma esfrega aí com qualquer coisa - p'r mái que nã seja, com um coisinho d' álcol - isto vai ô lugar...

E nã hôve mái conversa. Calhando, as mecinhas até cudaram qu' ê cá 'tava mangando com elas e nã deram importâinça ô caso. E fazeram elas senã bem, senã inda se punham p' ali com coisas e quem sabe lá se me dêxavam abalar com o resto da matula.

De manêras que, passado um pôcachinho, lá se c'm'çô a ajuntar a famila toda e aquilo, lá p' à banda das dez da manhã, deram ordes d' abalada.

Nesse entrementes, já ê cá tinha corrido aquilo tudo duma ponta à ôtra e tirado p'r 'lí uns retratos e coisa e tal, q'ondo vejo uma seta amarela lá numa parede de pedra. Pensí logo:

- Cá está. É este o tal sinal que des que 'tá no Caminho todo até Santiago p' àqueles que nã sabem, c'm' ê cá, nã se perderem.

E nã 'tava atribuído, nã senhora. Pus-me ali ô pé - da banda de trás até se via já bem a Torre dos Clérigos, qu' o navoêro tinha alevantado - e vá um retrato p'a me f'car de lembrança.

Aráujo, ô pé do Caravalho Santo
Ô chigar a Araújo, até f'quí insampado com estas lindas senhoras a darem água e dec'mer à gente...

Inda o Jôqu'nito 'tava de máquina na mão e ê cá a dar aqui um jêtinho nos cabelos e a pôr o chapéu bem no lugar p'a ver se nã f'cava munto mal no retrato, desata aquela malta toda a andar ali prêabaxo que par'ciam uns cavalos - com l'cença da palavra - mal tive tempo de me despedir do Jôqu'nito e pôr-me quái a fugir atrás deles.

- Atã, Dés te pague e até a gente se ver...

- Adés, Refóias!... Vê lá se t' aguentas nas canoiras... Olha qu' isso agora era vergonha abalares e nã dares chigado lá... O qu' é qu', e depôs, d'zias aí à famila?...

- Logo se vê... logo se vê... Mái tamém te digo: só volto p'a trás s' a perna me cair... D' ôtra manêra, leva sentido que, nem que tenha d' ir às quatro patas, hê-de chigar lá...

E lá fui...

Ôtro dia, 'tava ê cá a contar esta passaja o mê compad'e Jôquim do Barranco e à minha c'madre C'stóida, volta-se ela p'ra mim, munto crusidosa:

- Ó compadre, méme assim, vomecêa a abalar p'a uma coisa dessas naquele estado, nã l'e dé assim um coisinho de cudados?... Atã e se t'vesse qu' arrèlar lá p'r aqueles charazes, o qu' era de si?!...

- Olhe, c'madre, ê, d' ora im q'onto, quái que me vinha isso à cabeça, mái tã penas m' alembrava de tal coisa, punha-me a sobiar e olhava p' ô céu... Fosse o que Dés qu'sesse...

- Ai, mê belo amigo, que medo!...

- E, p'ra más, ê tinha-me aprecatado muntís'mo de bem com tudo o qu' ê cá cudavam qu' ia ter míngua. Calhando, até coisas a más ê levava...

- Ah, sim?...

Mosteiró
No sito do almoço, já 'tava tudo mái p' ô cansado que otra coisa...

- Olhe, levava um chapéu d' aba bem larga - uma espéce d' abirum daqueles d' ôt's tempos - que nã passava ali nada. Que fosse sol que fosse chuva, tapava tudo.

- E más o quem?

- Uns sapatos de sola grossa p'a nã sintir o chão e nã escorregar im banda nenhuma. Um bordanito p'a m' incostar e m' ajudar a salvar qualquer barranco que t'vesse d' atravessar e p'r 'í adiante...

- E o bordanito, arrenjô lá?

- Nã senhora!... Atã nã o leví logo daqui?!... Fui ali a um sito qu' ê cá sê, cortí uma vardasca de castanho, dêxí-a secar munto bem sequinha ali à sombra, alisí-a, a mês modes, aqui com a minha faquinha e aquilo dé um bordão do melhor que possa ser e haver... E olhe que me fez munto bom jêto!...

- E fez mecêa munto bem... Qu' o castanho até des qu' é a melhor madêra que se pode arrenjar aqui na serra...

- Foi méme essa a r'zão qu' ê cá o escolhi. Logo, qu' é do melhor que há, e, despôs, p'a m' ir semp'e a alembrar de cá da Serra de Monchique. E inda l'e digo más: voltô aqui nas minhas manitas, qu' inda o tenho ali gôrdado p'r trás da porta c'm' lembrança p' à vida intêra...

Mái, voltando à nossa conversa, pus-me a andar coxe-pé, coxe-pé, atrás dos ôtr's, p'r aquelas ruas estrêtas do Porto - e impinadas c'm' o diacho - q'ondo chego à vista da Torre dos Clérigos, já ia afègar e a pensar na minha vida...

O que me valé foi qu' ele havia p' ali uma parte deles que nã podiam passar sem bober um cafèzinho e apararam logo ali numa venda, na Rua de Cedofeita, e toca a descansar um pôcachinho e tomar um coisinho de fôlgo. E aquilo até que me calhô bem...

Daí p'ra diante, é que foi só andar e cada qual p'r si.

A Cêa im Vilarinho
À cêa, era cá cada paneladão de sopa... E otros dec'meres bons...

Tamém, verdade se diga, aquilo nã foi coisa que demorasse assim tanto tempo c'mo isso, já lá 'tavam umas lindas senhoras do Corpo de Voluntários da Ordem de Malta, ali num jardinzinho, com umas cestadas de fruta, sumos e água qu' até dava gosto.

Eram as tales qu' ê cá já falí ontordia, que foram do prencípio até ô fim semp'e prontas p'a ajudar quem t'vesse míngua fosse do que fosse. Nã me canso de d'zer que foi a melhor coisa que me par'cé naquele Caminho!...

De manêras que, lá me demorí só o tempo que tive preciso e fui andando p'a ver se nã chigava munto atrasado ô sito adonde se 'tava combinados p' ô almoço: Mosteiró.

Ê cá bem que andava c'm' dava, mái atão os ôtros andava tudo mái do que eu... Foram passando, foram passando... calculo que se nã fui o último a chigar lá, só se vinha algum inda mái p'a trás que nem dí p'r ele...

Nã foi más... Parte deles já tinham batido o alm'cinho, uns já tinham abalado p' ô resto do caminho do dia e ôtr's p' ali 'tavam espaldêrados, cada qual p'r sê canto. E tamém havia p'r lá uns três ó quatro - p'a d'zer más... - tôd's desmastreados que nem coraja béque-me já tinham p'a se jogarem a andar ôtra vez...

Agora q'ondo aquelas senhoras me vêem chigar lá a arrojar a perna, de cara afogueada e todo incharcado im suôr, nem mecêas dã fêto idéa do que se passô...

- Mái atã o qu' é que l'e aconteceu?!... - D'zia uma, coitinha, assim d' olhos munto abertos, quái de certeza pensando que haveram de ter me dêxar p'r o caminho...

- Nã foi nada, nã foi nada... Isto, ê já vinhe assim de casa, mái nã se mort'fique que, s' ê cá chigar a um ponto que nã dêa andado más, fico p' aí num lugar quasequer e logo alguém me vem b'scar...

Qu' ê cá, atão, já tinha combinado com o mê amigo Jôqu'nito que, calhando a ê f'car p'r o caminho, ele ia-me lá alcançar no carrinho dele...

- Ai, venha cá... Temos que fazer aí um tratamento c'm' deve de ser ó, atão, vai ser um problema... S' inda agora andô uma manhã e já 'tá nisso, c'm' é que mecêa quer dar chigado a Santiago?!...

- Dêxe lá... Seja o que Dés qu'ser!...

Preparos p'a dromir
E, p'r menes à larga, dromia-se...

De manêras que, nã l'es digo nada, aquela senhora e as ôtras que lá 'tavam foram umas santas que me par'ceram na frente. Quái que nã tive tempo p'a almoçar nesse dia, mái o mê joelhinho f'cô tratado c'm' deve de ser.

Ele foi pomadas, massajas, ginástica, ê sê cá... E, ô fim, levô ali um implastro e uma ligadura à roda, qu' ê até par'cia um jogador desses da bola...

E lá abalí a caminho de Vilarinho qu' era adonde a gente ia cear e dromir lá num armazém daqueles adonde os môços-pequenos da escola fazem ginástica. E olhem qu' inda assim nã se ficô lá munto mal...

Aí, as senhoras fazeram lá um paneladão de sopa e ôtros dec'meres, tudo munto bem fêto e gostoso, que foi c'mer até mái não.

E, tirando o chão ser duro c'm' um raça, a famila de lá ter levado a noite toda a tiçar foguetes ô S. Bento, p'a já nã falar duns três ó quatro amigos que roncavam que nem o pórco do mê compad'e Jôquim, o Trombão, e, às cinco da manhã, ter desatado a chover que só parô da parte da tarde, aquilo, inda assim passô-se a noite escapatòiramente...

Se qu'rerem ver os videos todos dos retratos qu' ê cá tirí no Caminho, acalquem aqui na Galeria do YouTube, mái, se qu'rerem ver os retratos com ôtras condiçõs, acalquem aqui na Galeria de Santiago, que semp'e sã um coisinho melhores...


Querendem, vejam aqui os retratos qu' ê cá tirí dos Monumentos do Caminho

E Dés l'e dê saúde.

2 comentários:

  1. Simplesmente extraordinário!
    Ver como decorreu esta grandiosa e magistral aventura. Como foi possível o Parente ter tempo para anotar tudo, e ter, ainda, especial atenção para admirar a beleza que o circundava. Tirar as fotos, e fixar os nomes das localidades por onde passou. Porque não foi uma nem duas, foram às dúzias. Com tantas torres, igrejas, viadutos, cruzeiros, capelas, fontes, estação de caminho de ferro, santuários, moinhos, pontões, pontes, fortalezas, marcos, espigueiros, albergues, estações, calçadas, rios, conventos, e por fim a catedral. Tinha que estar tudo muito bem planeado. Porque só assim foi possível não falhar absolutamente nada. Um muito bem-haja por nos trazer este testemunho impressionante de vontade e de querer.

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  2. Esteja com Deus parente,
    Antes de mais quero agradecer a forma como divulga o falar da nossa gente e o nosso sentir. Desde que descobri o seu Blog venho sempre aqui fazer uma visita. Parabéns pelo que faz, é um prazer ler o que escreve. Espero que continue por muitos anos e eu que veja.
    Um abraço
    Dinha

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Obrigado por visitar e comentar "O Parente da Refóias"