17 abril 2006

Q'ôresma e endoenças

O carvalhêro da Estrada do Alferce já tem candêo

Désna que escrevi a últ'ma vez, já se passô a bem d'zer uma semana. Mecês desculpem lá, mái foi p'r ca'sa daquilo qu' ê disse. Das endoenças e dos parentes e por 'í diente.

Q'ondo a q'ôresma chega, o alvoredo c'meça todo a arrebentar. Uma tarde destas, parí ô pé do carvalhêro da estrada do Alferce, só p'a ver com-m' ele 'tava carregadinho de candêo.

F'quí um pôcachinho a olhar p' àquilo. Sôbe-me bem ver aquelas folhas todas a nascer e as cachotas de candêo penduradas. Par'ciam quái os cachos das uvas das parrêras, que, neste tempo, tamém 'tã na méma.

Mái, se mecês qu'serem saber bem dessas coisas das arves, vã a um blog duma famila lá do Porto, alomeado por Dias com árvores, qu' aquilo é do melhor que há. Vê-se logo qu' é gente com estudos. Sabem tanto disso, qu' ê nã l'es dô encarecido... E, q'ondo calha, béque-me tamém parêcem p'r cá p'r a nossa serra.

Mái, falí ê cá que fui às endoenças. E fui. A minha Maria gosta daquilo que se péla, ê tamém nã desgosto, e atã, quái tôd's dias, lá se foi caminho da Vila.

'Tá bem que se tinha cá os parentes de Lisboa, mái eles tamém sã boas pessoas e, enq'onto isso, iam dar uns banhos de mar lá p'ra baxo p' ô Algarve, qu ' eles p'r praia sã c'm'à minha Maria p'r precissõs... T'veram foi pôca sorte que, na Sexta-Fêra da Paxão, a manhã 'teve embrulhada e, na tarde, chové d' enfiada até já bem de nôte.

Atã, vejam bem, qu' nem fazeram precisão nem nada, nessa nôte... Ora, a gente foi tôda a tarde metidos em casa a tramelar e a c'mer p' ali qualquer coiséca. Pôs, que nem tampôco se podia c'mer carne, qu' aquilo era dia santo de guarda, tinha que se respêtar o jum e abst'nência...

Ê cá até m' ia descudando. Tinha p' ali um resto dum presunto qu' ê comprí ô ti Alvino das Martunhêras, qu' os mê's inda nã os tirí do sal. Conversa p' aqui, dichote p' ali, vá mái uma cervejinha... Más um coisinho de palêo e vá ôtra cervejeca...

Dig' ê cá:

- Mái atão 'tá-se a qui a b'ber a cerveja às secas?!...

E jog'-me ô presunto, que 'tava ali, em cima da menza, embrulhado num paninho branco p'r ca'sa das moscas. Puxo da minha faquinha d' alsebêra, nisto, logo a minha Maria a me dar um eco. Quái que panhí medo e até ia dando um golpe aqui no dedo miminho:

- Ó homem, atã nã sabes qu' hoje é Sexta Fêra da Paxão nã se pode c'mer carne?...

- Uái, que já m' ia desquecendo... Atã assim, com qu' é que se acompanha a cerveja?... - Disse ê cá, um coisinho embatucado.

- Comam alcagóitas, se qu'serem... Nem tampôco cerveja haveram de bober num dia destes...

- Alcagóitas?!... Temos algumas em casa?! Só s' o ti Raúl, que Dés o tenha, inda andasse a vender nelas, com-mo nôtros tempos, ali p'as bandas da agência. Comprí-l'e muntas inda a três destõs...

Uma ocasião, fui ô mercado de Portimão ver se comprava p' a lá um mentão p'a uma vaca qu' ê tinha aqui. Q'ondo cheguí à agência p' a panhar a carrêra das sete, já o ti Raúl lá 'tava a apregoar:

- Olha a ervelhana! Ervelhana torrada!

Inda o 'tô vendo... Baxinho, chapéu na cabeça, com o sê colete dele, preto e já bem munto puído do uso, alcôfa de emprêta bem chêa d' alcagóitas torradas, sigura p'las asas, com a medida de madêra, em alto cagulo sempre pronta p'a aviar algum freguês que par'cesse e t'vesse, naquele tempo, três destõs p'a l'e pagar... E repisava, enq'onto dava mái uns passinhos até ô café, passando p'a porta dos bombêros:

- Ervelhana torrada! Olha a ervelhana!

Dé-me um derrepente, vô-me caminho dele, já a sigurar na cartêra:

- Eh, ti Raúl, que tal vai essa r'jeza, homem? Inda vende isso ô mémo preço?

- Q'ontas medidas quer? Uma ó duas? - Responde-me ele mái p' ô escrapanudo qu' ôtra coisa.

Béque-me nã gostô munto dos mês modes. Ele, quái nunca se ria, más era cá um amigo dos bons...

E lá l'e comprí duas medidas bem chêazinhas, qu' ele, lá nisso, acagulava bem a medida de madêra. Tamém, se fosse só rasa, levava pôco mái de três alcagóitas... Aquilo era p' aí um mêcôrtilho, se tanto.

T'vemos a falocar um pôcachinho, encomendí-l'e mê quilo de alcagóitas cruas p'a samear e más isto e más aquilo, q'ondo dí p'r mim já a carrêra 'tava a arrecuar da agência p'ra fora. Abalí logo a fugir senã f'cava em terra. Com a pressa, até o chapéu me saltô da cabeça e inda tive que voltar trás p' ô panhar. Mái nã teve dúv'da qu' o chòfer da camineta nã era homem de pressas e esperô p'r mim.

Inda voltando às endoenças, agora já nã há, mái, nôtro tempo, comprava-se as bulas lá ô senhor Prior p'a se poder c'mer carne na q'ôresma. Em tôd' ô caso, a Sexta-Fêra Santa tinha semp'e que ser respêtada.

Atã e os contratos qu' a gente fazia q'ondo s' era môces-pequenos?!... 'Tão lembrados?

Com o dedo miminho enganchado no do ôtro d'zia-se: "Contrato, contrato / contrato fazemos / sáb'd' aleluia / desmancharemos". E, tôd's dias, mandava-se o ôtro olhar p' ô céu... Era uma entretenga p' à gente e no Sábado d' Aleluia, o que d'zesse pr'mêro ganhava um pacotinho d' amêndoas ó ôtra coisa que se t'vesse combinado.

Agora, já nã se usa nada disso. Assim c'm' ôs compadres de palmas que se faziam no D'mingo de Ramos. E f'cavam a se tratar p'r compadres p'a sempre... Inda hoje, conheço alguns, nã cudem.

Bem, como isto já é tarde, logo se conversa mái um pôco lá p' amanhã ó despôs.

Passem munto bem.

2 comentários:

  1. Ainda bem que lembra aqui o emblemático Ti'Raul, cuja figura baixa, de bigode, que com as duas medidas de madeira metidas na alcofa apregoava as suas alcagóitas, a cinco ou dez tostões. Figuras de outros tempos que trazemos na memória até hoje.
    Já não vivo em Monchique há algumas décadas, mas ainda hoje cultivo as suas tradições com os meus filhos, nascidos aqui bem perto da capital. No sábado de Aleluia passado ganhei um pacote de amêndoas à minha filha, por causa dos contratos.
    Apreciei bastante a leitura das histórias do Parente da Refóias.

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  2. Excelente, adoro estes textos! Não tenho lembranças do Ti Raul, deve ter sido antes de eu viver em Monchique. Vivi aí de 1991 a 2001! Aiiii que saudades! Daqui a uns dias vou aí de férias e já ando a contá-los :)

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