28 abril 2006

Excursão da Mãe Soberana: uma bela enganifa

Andor da Mãe Soberana de Lôlé

Nã sê se mecêas sabem, mái, este D'mingo, é dia da Festa da Mãe Soberana de Lôlé. A famila aqui dos nossos lados tem c'stume de , tôd's anos, fazer uma excursão p'a ir a essa festa que, há quem diga, qu' é a mái antiga lá do baxo do Algarve. Des que tem p'ra cimba de quatr'centos anos ò mémo até um mê milhêro deles e ajunta-se lá pessoal de tôd' ô lado. Só aqui de Monchique, muntas vezes, chegam-se a enchêr duas caminetas, calculem...

Inda agora, passí ali à Fonte dos Ch'rõs, e vê-me à idéa uma passaja que se deu, há uns belos anos, méme naquele sito. Uma enganifa. Ê cá nã tive lá, senã no fim, qu' ê, esse ano, nã fui qu' a minha Maria, qu' inda era nova, embirrô que nã havera d' ir lá, p'r ca'sa dumas coisas dela, e atã nã se foi. Más o mê compad'e Jôquim, esse foi. Foi... Foi até à Vila. Ele até nem aprecêa nada que se l'e fale nisto. E mecêas já vâ ver ó perquém.

Pôs o caso foi este:

Andaram p' aí uns à cata de famila p'a ir na excursão. Na Vila, em Marmelete, béque-me no Alferce tamém, aí p'r tôd' ô lado, e iam logo fazendo o jêtinho d' arreceber o d'nhêrinho dos pobrezinhos. O mê compad'e Jôquim, qu' é de munto boas contas e gosta d' amostrar que tem p' além um d'nhêreco, q'ondo tem, puxô logo da cartêralha e prèguntô q'ont' é que tinha a pagar.

Nôt's lados, eles tinham só pedido à metade, mái q'ondo viram qu' o mê compad'e tinha a cartêra chêazinha de notas, d'zeram-l'e que s' ele pagasse logo tudo, inda l'e tiravam uns dez mem rés do preço que já l'e tinham dito.

O homem, que nã é má pessoa, mái por um destão nã sê o qu' ele é capaz de fazer, contô munto bem, p'r duas vezes, a conta que l'e pediram, dé-l'o, e combinaram que, despôs, era só irem lá, no D'mingo da Mãe S'brana, panhar a camineta ô pé da venda do Entradas.

No dia da festa, logo de manhãzinha bem cedo, p'a melhor d'zer, inda era bem de nôte, c'mecí a ôvir umas vozes além p' ô lado do monte deles, vi logo que se tratava da abalada. Já há um belo pôco qu' ê tamém nã d'rmia, pensí:

- Dêxa-me lá alevantar, vô-m' ali p'r trás de casa ôlhar ôs bichos e semp'e dô p'r eles abalarem. A minha Maria, que 'tava a caçar ratos voltada p' ô ôt' lado da cama, dé logo remôr:

- Atã, já te 'tás a alevantar?

- 'Tô aqui mal na cama, vô-me adiantar o servicinho qu' ê hoje quero ir mái cedo p' à Vila p'a ver se 'tô lá com o ti Alberto do Correpito qu' ele f'cô de m' arrenjar umas batatas de semente, dumas sigundêras qu' ele tem p' a lá, e ê tenho preciso delas a toda a hora.

- Nã ôves, atã hoje nã é a Mãe Sob'rana?... Por isso, ê, já há um belo pôco, que oiço barulhar além p' à dos compadres... Tenho um desgosto tã grande de nã ir... - Disse ela, devagarinho, já béque-me repesa de nã ter dêxado comprar os b'lhêt's.

- Se nã se vai, foste tu que nã qu'seste...

Bom, alevantí-me, fiz o que tinha a fazer e lá os vi abalar. Nã disse nada p'a eles nã pensarem qu' ê cá 'tava à coca a bispar tudo.

Mái tarde, 'í p'r essas onze horas em diante, lá abalí caminho da Vila, sòzinho, qu' a minha Maria inda f'cô em casa. Des que, despôs, logo s' encontrávamos no adro, ô fim da missa.

Tã penas apontí ô campo da fêra p'ra baxo - o campo da fêra era, naquele tempo, ond' é, hoje, o estacionamento de carros debaxo do chão - e alcanço a Fonte dos Chorõs, estranhí logo ver um gentío tã grande ali à porta do Entradas, mái pensí, c'm' aquilo era p' aí à hora rigular, inda nã tinham ido p' à missa.

Dô más uns passos p' â frente, vejo um abêrão preto a luzir no mê da famila, par'cé-me o do mê compad'e Jôquim do Barranco. Um chapéu d' aba larga qu' ele tem e faz presunção de levar sempre q'ondo vai algum lado. Mái pensí qu', àquelas horas, já eles 'tavam fartos de 'tar em Lôlé.

Asomí-me melhor, mái nã l'e via a cara. Ele é assim p' ô baxo com' ê cá, quái até um coisinho emblôtado. Mái, lá fui, lá fui, 'té que dí com ele, de costas, a esbracejar e a clamar alto, com-m' ôs ôt's quái tôd's, qu' aquilo par'cia uma fêra com o rèclame da banha da cobra e tudo...

Dô-l'e uma manetada nas costas, devagarinho, qu' o homem 'tava desalvorado, ele vira-se, bom, nem par'cia o mê compadre qu' ê conheço:

O abêrão, de lado, quái a cair da cabeça, o colete castanho com dôs botõs desabotoad's, a camisa com o colarinho com uma ponta p'ra fora ôtra p'a drento e toda desfraldada, par'cia ele qu' andava a vender aguardente, até as calças l'e tinha descaído e já as andava a pisar com os sapatos do D'mingo... Isto p'a nã falar da cara dele. Até 'tava desfigurado e o suôr corria-l'e em bica désna da testa até ô bescoço.

Dig'-l'e:

- Compad'e, mái atã o que foi isto? Inda aqui a umas horas destas?!... Nã me diga qu' o chòfer desquecé-se de mecêas... Ó saria a camineta que teve algum furo?...

Punhéfra, dá-l'e uma ravasca, vem d'rêto a mim, de braços abertos, par'cia que m' ia engolir:

- Compad'e Refóias, nã se ponha com coisas!... Olhe qu' ê já nã ' tô bom... Nã me diga nada!... Nã me diga nada!... Olhe qu' ê já nã sê o que faço...

Aí vi qu' aquilo 'tava méme ruim. O melhor era nã me descudar munto e ver se l'e dava fêto passar aquelas ganas.

- Ó compad'e, 'pere aí, nã s' a borreça com-migo, qu' ê sô sê amigo. Venha dái, vamos beber ali um calcesinho ô Entradas e nã se fala mái nisso. Ê nã no qu'ria apequentar, homem...

- Se vomecêa l'e sucedesse uma coisa destas, tamém nã havera de 'tar contente. Mê belo dinhêrinho... Logo ê cá paguí tudo naquele dia. Mê belo d'nhêrinho... - D'zia o compad'e Jôquim quái a chorar, já com as vistas chêas d´água.

Enq'onto ele falava, pus-me a olhar bem à roda de mim.

Aquilo era quái só m'lherío, todas com rôpa do D'mingo, a C'mad'e C'stóida um coisinho mái adiante, com a sua camisêra toda vaporosa, conversando com a ti Zabel T'mé, toda de preto qu' enviuvô faz dôs anos, a Cilinha nã na vi, do ôt' lado umas além de trás da Perna da Negra, ôtras do lado da Mariôila, tudo com bolsas e cestas de verga, daquelas adonde se leva o farnel, uma até tinha uma alcôfa com as asas atadas com uma tamiça e uma saca do amóino nã sê com o quem...

P' a quem 'tava de fora com' ê cá, era um pagode. Rir é que não, senã o mê compad'e perdia' ô tino. Mái, só cá p'ra mim, enchi bem o papinho...

E foi-se entrando à do Entradas, pensando ê cá que, lá drento, se podia falar à nossa vontade. Qual o quem, aquilo 'tva chêzinho até à porta... Custô-se a chigar ô balcão p'a pedir um calcesinho dela p'a cada um. Os homens tinham passado lá a manhã quái toda e, uma parte deles, já 'tavam escarados.

Lá se pusemos ali a um cantinho e começí a ôvi-los contar o caso.

O compad'e Jôquim vi logo adonde é que 'tava. Dé um arrulho que havera de s' ôvir na rua:

- Aqueles mariolas fugiram com o mê d'nhêrinho!... Mê belo d'nhêrinho... Tanto que me custô a ganhar. E assim m' o levaram...

Ê nã l'es disse qu' ele p'r d'nhêro é pior qu' o mê Trombão p'r rama de fava? Pôs só l'e faltava chorar...

- Ó compad'e dêxe lá isso, pode ser qu' eles nã tenham arrenjado camineta e inda l'e venham trazer o d'nhêro ôtra vez. E nã se desqueça que mecêa inda nã é dos más presicados, qu' eles tiraram-l'e dez mil rés p'a vomecêa pagar logo...

Enqónto isso, 'tava o Manel Cachimbo, ali ô canto do balcão, a falar com o Luís Pipa, mal se davam siguro de pé com os caláiços que já tinham emborcado. D'zia o Manel:

- Aquilo, calhando, o chòfer inda nunca vêo a Monchique e perdé-se, há-de ter ido parar a ôt' sito, quem sabe lá adonde...

- Qual o quem!... - respondia o Luís - Isto foi coisa de desastre. 'Pósto que foi desastre qu' eles t'veram aí p' ô Barracão ó coisa assim. Hõ-de ter fêto a camineta em fanicos e, sabe-se lá, com'm é qu' eles f'caram tôd's. Se calhar, morré tudo...

Ali más p' ô canto, encostados a um barril de vinho vazio munto ferrujento, e, tamém, já munto empeçados, o Cosme da Quinta d'zia p' ô Lexandre Texugo:

- Ê inda tenho aqui uma coisa que me diz qu' eles que parêcem. Atã iam dêxar a gente em terra despôs de se pagar?!... Nunca más eles antravam em Monchique...

E o Texugo, sempre de répla na ponta da língua:

- Parêcem, parêcem... A estas horas 'tam-se eles rapimpando com o nosso d'nhêrinho, sabe-se lá com quem, e a gente aqui à espera, fêtos parvos... Ê, tamém, inda só l'e tinha dado metade. Hoje é que l'e pagav' ô resto. Mái, méme assim, foi esse que perdi.

E, com isto, já havia de passar bem munto da hora rigular, despedi-me do mê compad'e Jôquim e fui andando até à Igreja que já nã tardava munto p' à missa da uma.

Sube, despôs, qu' a camineta nunca chigô a par'cer, os que s' entreteram no Entradas b'beram-l'e uns caláiços em forte e custaram a ir p' a casa com as pelhêgas que panharam e as m'lheres, pobrezinhas, f'caram à espera até mêa-tarde e t'veram que voltar p'ô monte com as cestas carregadas com-mo tinham abalado.

O Manel Cachimbo e o Luís Pipa, despôs do Entradas fechar, viram-nos na Estrada Velha, abraçados um ô ôtro, a ver se se davam sustido de pé.

D'zia o Manel p' ô ôtro:

- Tem cudado qu' isto aqui é de ladêra abaxo. Vê lá se escorregas p' aí...

- Agora, o que calhava era ir-se b'ber mái um calcesinho ali à da Açoreana p' a nã s' ir côxos. - Respondia o Luís.

Nisto, o Manel encalha com a biquêra duma bota no tacão da ôtra, nem teve tempo de d'zer nada. Amajulô no chão.

- Mái atão, 'tá aí um bajôlo no mê da estrada ó quem?!... É assim que se dã os desastres...

O Pipa vai p' ô ajudar a alevantar:

- Vá, sigura-te a mim. Força! Vá...

Conforme faz força, afocinha em cima do ôtro.

- Ah, fado dum ladrão, ê nã te disse p' a puxares p'ra baxo. Ê é que puxava p' a cimba...

E ali f'caram, que tempos, naquele enlêo...

Tã penas s' alevantaram, o Luís Pipa dá um gangueão, fica encostado ô v'lado a ch'mar p'lo grigóiro. O Manel nã dá p'r nada, anda ôs lóres quái dum lado ô ôtro da estrada, semp'e a falocar...

Vem o Luís, ôtra vez:

- , béque-me emborrachí...

E o Manel:

- Pôs, põs, o que calhava agora bem era más um copinho p' à abalada.

E foi, assim, a excursão da Mãe Sob'rana que nã se chigô a fazer. Contado à minha manêra, 'tá visto. Mái se algum de mecêas saber más alguma coisa do que se deu, conte. Nã fique vergonhôso de ter perdido o sê d'nhêrinho e nã ter ido à festa.

Bom, dêxa-me lá ir, qu' ê tamém tenho que m' arrenjar p'a ir à Mãe Sob'rana. Mái nã vô na camineta, nã pensem...

E, Sigunda-Fêra, vamos desmaiar... Olhem qu' o Maio é o nosso dia.

Fiquem-se com Dés.

1 comentário:

  1. Ah fado dum ladrão, que coisas tão bem escritas e descritas. Só mesmo quem conhece, ou antes, conheceu, as situações, os tiques subtís aqui retratados...Só mesmo quem, por alguma razão está longe, sente uma verdadeira emoção ao ler isto(não será por acaso que todos ou quase todos os comentários são feitos por monchiqueiros "emigrados"). Gostei muito da alusão ao colégio pq lá andei de 1970 a 1975. Recordo as personegens referidas, como o sr. Fausto da secretaria, o Dr. Brás (velho Brás para nós), as contínuas amorosas, o padre Zezinho. Desafio o autor para fazer uma incursão às suas memórias de elefante e contar-nos peripécias passadas no nosso querido colégio que hoje infelizmente já só existe na nossa memória e que em breve será de todo esquecido.
    Um abraço ao autor e cumprimentos a todos os leitores do blog.
    HeR

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