Ô chigar ô Largo de Marmelete, qualquer um lombrigava logo o ajuntamento de famila à roda d' adonde os artistas 'tavam a fazer os sês trabalhos. E dig'-l'es já. Aquilo morcia ser visto. E com tempo.
Ê cá f'quí lá tod' à tarde. Fui p'a um lado, voltí p'a ôtre, tirí retratos, ê sê cá q'ontas vezes é que dí a volta àquilo... Só o pôr-do-sol e uma arajazinha do norte é que me fazeram enrolar as botas e abalar caminho de casa.
Verdade se diga, ô mémo tempo, tamém os artesãs s' arresolveram a gôrdar os sês trabalhinhos e irem à prégunta dum dec'merzinho que, p'lo jêto, a Junta ia pagar p'ali num restaurante, qu' os pobrezinhos bem no mer'ceram, despôs de levarem ali um dia intêro a trabalhar e amostrar aquela linda obra deles, qu' ê nã l'es dô encar'cido.
Pôs olhem, ê nã dô falado deles tôdes, que bem gostava, mái vô falar d' alguns. E que, tant' uns com-m' ôs ôtres, nã s' enfèzem com-migo, fazendem favor. É qu' aquilo 'tava tudo cá com uma classe qu' ê nã sê p'r donde l'e pegar... Atão, vai ô calhas.
A pr'mêra barreca com que dí foi uma chêazinha de coisas fêtas de trapos. Da parenta Bia Júlia da Refóias. Uma coisa linda de se ver... Eles chomam-l'e trapologia. No mê tempo, ch'mava-se ratalhos.
Nã l'es dig' nada. A minha Maria pôs os olhos naquelas bolsas, bonecas e coisas assim, quem é qu' a dava arrencado dali, senhor?!... P'r ela, levava logo aquilo tudo à m'lher. E até que nã era caro. Olhando ô trabalho e à mort'ficação que qu' há-de dar, era quái dado...
Agora vejam uns q'ontos retratos qu' ê tirí. P' ôs verem maiores, acalquem neles com o rato:
Que tal acham? Olhem qu' é tudo fêto de trapinhos cozidos uns nos ôtres e rendas e coisas dessas fêtas à mão...
Logo prebaxinho, 'tava o mest' Zé Pires, da R' Nova, com as sus colheres de pau. O homem faz aquilo com uma hab'lidade qu' até dêxa uma pessoa ensampada. Pega num tanchôto d' urza branca, agarra-se ô serrote, à enxó, ô formão, à grosa e mái umas tantas farramentas qu' ele tem, punhana, inda bem não, já tem uma colher de pau fêta...
Pus-me a olhar p' àquilo e a tirar retratos, nã l'es dig' nada... Já 'tava a ver qu' inchia a mánica e f'cava sem dar tirado tamém ôs ôtres. Até dava gosto...
E o home é munto ad'vertido. 'Tá semp'e com chalaças. Tem uns binóc'les ali im cimba da mesa, junt' às colheres, a quem l'e prècura p'ra qu' é aquilo, responde logo:
- Isto? Isto sã uns binóc'les da guerra de qôrenta e cinco. Coisa de pr'mêra... Já 'tã na minhas mãs há tantos anos que nem m' alembro. E custaram-me os olhos da cara, qu' isto é material de boa q'ôlideza...
- Mái diga lá p'a qu' é que quer isso aqui, mest' Zé?
- P'a qu' é que quero? Olhe é p'a ver o fundo às colheres... Nã vê? Olhe, esta 'tá quái pronta. É só mái um jêtinho com a lixa e pronto...
Nisto, pus-me a olhar bem p' às ferramentas, repáiro na enxó. Vi logo qu' aquilo tamém era peça d' ôtres tempos. Dig'-l'e:
- Ó t' Zé, essa enxó tamém já desbastô munto pau...
- Cale-se aí!... Ist' é uma ferramenta qu' ê tenho uma estimação que mecêa nã calcula, ti Refóias. Comprí-a q'ond' eles anderam aí a alimpar as sobrêras, há mái de cinquenta anos. Pôs, há uns cinquenta anos ó más... Atão aquilo, 'tava ê cá quái na idade d' ir à tropa...
- Pôs, havera de ser. Atã ê andava na escola da R' Nova, nesse tempo... E vomecêa é um coisinho mái velho do qu' ê cá.
- Munta calfa tirí ê cá com esta enxó... Comprí-a d' a pr'pósito e ganhí bom d'nhêrinho com ela. Aquilo era de manhã à nôte. Ganhava-se à peça, q'onto mái tarôcos de sobrêra se descascava mái se ganhava...
Nesse mê tempo, pôs a enxó de lado e jogô-se à grosa p'a ver s' alisava um coisinho más a madêra, que já ia enformando.
Com a colher acabada e um calcesinho dela no papo, que, nestas ocasiõs, há sempre um amigo que leva uma garrafinha, abalí prê abaxo, vem-me um chêrinho tã bom a fritos, ê sô perdido p'r aquilo, estanquí logo ali.
Era a D. Ester, dos Gralhos. Ela a fazer f'lhozes, fritos, panitos com chôriça e ê sê cá que más, tudo à moda antiga, e a mana dela a vender à famila. Dig' p'ra mim:
- Nã é tarde nim é cedo. Vô-me provar uma coisalha destas.
Volto-me p' à minha Maria:
- Maria, compra lá 'í umas f'lhòzinhas e uns fritos p' à gente. Se nã tens d'nhêro àvonde, 'tá aqui na minha pataca...
- Tenho d'nhêro sim, qu' ê vendi umas q'ontas dúizas d' ovos esta semana e fiz um belo d'nhêrinho...
Acudiu logo ela, munto senhoril.
- Atã que m' é que vende isto, hoje?
Perguntí ê cá, apontando p' ôs fritos.
- Olhe, é tudo a um ero. E se comprar alguma coisa, pode provar um solvinho de madronho ó de melosa, qu' é p'r conta da casa.
- Munto bem me calhô... Atã, dê-me logo aí um frito e pode ir já despejando um calcesinho dela, qu' é p'a desembaçar... A minha Maria, calhando, quer melosa, qu' ela pela-se p'r coisas doces.
Assim despejaram logo um calcezinho dela p' ô Parente da Refóias limpar as goélas...
Salta logo a minha Maria:
- Ê cá nã quero nada de bobidas. Bem sabes qu' ê cá nã bebo... Só como aqui uma f'lhòzinha, mái ponha-l'e um belo açucarinho...
Inda l'es digo. Nã sê o que 'tava melhor... S' as f'lhós eram da ponta da orelha, os fritos tamém. O pã com chôriça é que nã no proví que já tinha enchido o papo com o resto, mái, o que me d'zeram é que 'tava de c'mer e chorar p'r más...
Agora no que diz respêto ô madronho... é menino, aquilo até estralava à goéla abaxo!...
E t'vemos que desandar logo dali, senã o qu' era isso?!... Mái-logo nã me dava sustido nas pernas. É qu' aquele madronho 'tava bem agraduado. Aquilo era coisa p'a ter os sês vinte e um degraus. Se nã nos tapasse bem, p'r menes vinte e mêo tinha...
Mái o resto ê logo l'es conto nôtra vez.
Dés l'es dê saúde.
Os sacos de pão e as bolsinhas feitos de retalhos lembram-me das manhãs solarengas quando era pequena e ia ao pão ao Xavier (a propósito, não vejo a hora de me ver com o dos seus pãezinhos com torresmos nas mãos), e todo o encanto desses tempos, tão alegres quanto as cores dos ditos saquinhos, que felizmente ainda guardo para o meu enxoval.
ResponderEliminarA arte das colheres de pau feitas artesanalmente recorda-me o meu avô, e os segredos que ele me contava sobre as árvores, os pássaros, e toda a serra onde nasceu, viveu e morreu, conhecendo-a como a palma da sua mão.
E não posso deixar de fazer referência ao Zé Carochinho, hábil artesão (grande amigo do meu avô) que fazia também essas típicas colheres, e poeta popular.
Magníficas imagens que você aqui tem...
...ai eu acho que vou mudar para aí! Até a linguagem é cantante. Não há uma escola velha ou um posto de JAE para "ocupar"? É que o parente põe-se com esta doçura toda, medronho, mai-lo clima e tal. E a gente fica a modos que ...
ResponderEliminarraiventa de não estar onde está o mundo!
MaD,
ResponderEliminarDés te dê saúde, pelas soidades que mato por aqui.
Do Mestre Zé Pires, nã conheço. Mas da R'Nova, conheci a palmo, a rua principal e a de trás...
E lá em baixo, depois da descida toda, depois de passar a figueira grande, virando à direita, ia até ó Mestre Luis, sapateiro, que tinha uma filharada da minha idade e era cá um pantomineiro...
Eh...eh...grandes historietas contava.
Ali onde a rua virava, cá em baixo, morava a D. Chiquinha e o marido, o Ti Filhozinha, Deus os tenha!
Marmelete, onde se baptizou minha irmã, se crismou o meu pai e eu...
nos recuados tempos do Padre Espanhol!
Já semos duas ... Olhe que estou desanimada hoje: tinha feito uns escritos para si, cheios de introspecção e recordações e Pumba! lá carreguei na tecla errada! A ver se amanhã me achego ao seu conhecimento... e digo o que tenho a dezer! Abç
ResponderEliminarMinhas belas amigas:
ResponderEliminarDês l’es pague as coisas tã bonitas que dizem.
Ana Pinto, vá lá qu’ inda pode provar na méma os bolos de torresmes do sê v’zinho Xavier, já qu’ o resto, a sabedoria do sê avó, os versos do Zé Carôchinho e ôtras coisas mais, já quái tudo se foi…
Bettips, aquela casa de cantonêros 'tá vaga e bem precisa de quem olhe p’r ela. Aprovête-se…
Ai, que pàxão f’car sem nada pre mode acalcar no botão en-rrado…
Acontente-se com-migo que tamém já se me tem dado o méme. Olhe, inda hoje, foi o dia todo em vão…
Anamargens, desses sitos todos e famila que falas, ê cá tamém tenho que sôidades... O ti Luís Calrão tinha munta conversa e tinha fama de ser munto valente q’ondo era novo… A f’guêra grande, à quina, p’r onde se passava p’ ô encurtadoiro p’ à Brèjêra e Forno Velho… O padre Crisântemo, nã era o nome dele?
Alfazema, há p’r cá casas com fartura. 'Tá é tudo velho e quem-mado. Tudo marafado… E é má d’ achar os donos, que tem fugido qu’ai tudo lá p’ra baxo p’ ô Algarve. A serra do Caldêrão tamém é um coisinho minha. Passí umas belas temporadas, em Salir, q’ondo era moço pequeno. Inda hoje em dia lá tenho famila.
Passem todas munto bem, m’t’ôbrigado m’t’agradecido, Noss’ Senhor é que l’ há-de pagar.
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ResponderEliminarO Parente com a sua escrita e imagens merecia um prémio do Blogger... É que blogues há muitos mas com esta qualidade conheço poucos.
ResponderEliminarMais uma vez muito obrigada Parente, consigo viajo "p´ra fora cá dentro".
~*Um beijo*~
Cá estou eu outra vez a matar saudades lá dessas bandas...
ResponderEliminarMê Parente - alembrou-me de madronhos: Beber, feito em aguardente, nã senhor, nunca m'acostemei...agora comê-los madurinhos, ai quem dera!
E tenho também, muitas vezes, lembranças da minha serra e das estevas...
Gosto tanto de estevas, tojos e urzes!!!
E tenho saudades dos tempos em que ia uma debulhadora, do Zé Duarte da Rua Nova, debulhar o trigo por esses montes, e do cheiro da palha...
E lembro-me de ser criança e ajudar o Parente Dionísio da Rua Nova e mais a filha dele, a Laurinda a semear milho e feijão.
E semear batatas e regar os tomates e os melões...
E o cheiro da terra a regar pela fresca da noite...
E as mulheres a lavar no tanque que ficava mais abaixo da escola da Rua Nova, quando era lá professora a Dona Aliete, que tinha uma empregada chamada Domingas.
Até me lembro do cheiro a pão cozido, a sair do forno da Ti Francelina!
Como são doces os cheiros da infância...
Minha bela Rosmaninho:
ResponderEliminarQue mecinha mái porrêraça que mecêa é...
Dés l'e pague.
Anamargens:
ResponderEliminarCada vez que vomecêa escreve aqui, é mái uma remessa de sôidades cá p' ô Parente.
Essa famila é tudo gente conhecida.
Mái alguns, com-m' ô ti Tóino D'oniso da R'Nova e o irmão dele, o ti Chico D'oniso do Forno Velho, já p'r cá nã 'tão e que Dés os tenha.
Vendi-l'es, ôs dôs, muntos molhos d' oregues, a cruzado, e passarinhos a três e a cinco destõs, p'ra eles, despôs, irem vender a Vila Nova...
A debulhadêra p'a trabalhar tinha que ter os mólhes de trigo nas êras. Cá o Parente acartô muntas cargas deles no lombo da Laranjinha, a burra desse tempo, p' à êra das Gamarras. P'r cada caminho, uma hora... Entre as cinco da manhã e a hora rigular, já que, despôs do mê-dia, o trigo f'cava munto ásp'ro e debulhava-se p'r o caminho.
A D. Aliete foi tamém quem ensinô a ler. Mora em Vila Nova e a senhora D'mingas inda 'tá com ela. Só o Sr. Zeca é que já partiu faz uns q'ontos anos.
E nã digo mái nada...
M't'ôbrigado, Ana margens.
Simplesmente delicioso, adorava ter lá estado.
ResponderEliminarParabéns pelo blog, melhor não pode haver.
Obrigada ao "Parente de Refóias" por tão bela descrição da feira de artesanato.
saudações cá de cima,
avó Guida