Esta ingreja é pequenalha e pode nã ser munto vistosa, mái pertence a S. Sebastião, um santo que munta famila gosta ô bem fêto, cá na nossa terra. Até l'e chamam o "Márt'e Sagrado", p'r mode os romanos o atarem a um tróço d' arve e l' atravessarem o corpo todo de setas.
'Tá um coisinho fora de volta e, calhando, inda há p'r cá quem nã na tenha visto. Isto p'a nã falar dos que vêem d' ot'as bandas e nem tampôco sabem o caminho p'a lá chigar.
Mái uma coisa l'es dig' ê cá. Drento desta ingreja, 'tá gôrdada uma imagem de Nossa Senhora do Desterro qu' é uma coisa de estimação. Já foi fêta vai p'a trazentos e muntes anes, des que foi no séc'lo XVII, e ad'vinhem lá d' adonde é qu' ela vêo?...
M't'ôbrigado, vomecêas acertaram tôdes, logo à pr'mêra, p'r ca'sa do nome... E é verdade. Trazeram-na do Convento. Qu' o Convento tamém se chama de Nossa Senhora do Desterro e, olhando bem, até se vê no ali retrato, na chapada da banda de lá.
Com tantas ingrejas qu' há na Vila, mecêas hõ-de prèguntar que jête ê falar, hoje, nesta. Mái a rezão é só esta:
Q'ondo ê 'tava a tirar os retratos, apròchêga-se de mim o ti Zé Caçapo, o tal qu' a gente usa a l'e ch'mar "Verruma". Ora, ê cá 'tava tã emprensado a apontar a mánica que nem dí p'r ele.
Nisto, oiço uma fala, assim baxinho e, béque-me, ô longe, qu' ele tinha posto a mã em par da boca e voltado a fúiça p' ô lado, p'a d'sfarçar, qu' ê, logo, nã precebi quem era:
- Olha, 'tá aqui um "tôirista" a tirar retrates à ingreja do Márt'e Sagrado... D' adonde é qu' ele sará. Sará englês ó sará da Moita?...
Punhana mundo!... Subi-me logo aqui o sãingue às ventas... Atã, um badalo qualquer a me ch'mar aqueles nomes, assim sem más esta nem más aquela?!... Ora "tôirista" da "Moita"... Vê-me logo à idéa aqueles bichos pretos que têm duas coisas espetadas na cabeça e vã p' às toiradas...
Com a rabeada que me deu, volt'-me de rompante, dô de caras com o Verruma, já o marafado ria às carcachadas. Aquilo nã me passô logo, inda l'e falí de rijo:
- O qu' é que foi, sê mariola?!... Atã isso chama-se assim nomes a qualquer um, sem más nem quem?!... Tenha lá tento nessa língua!...
Atã é qu' o raio do velho se ria... Foi q'ondo vi bem qu' era ele.
- Ai é vomecêa, ti Zé? Olha que esta!... Já m' ia fazendo enzainar...
- Nã te marafes, Refóias, qu' ê 'tava só a mangar contigo... Atã andas a tirar retrates ô quem? Nã me digas qu' agora dêxaste o tê serviço e deste nisto... Já sê adonde ir q'ondo ter precisão de tirar o retrate p' à carta de caçador, qu' acaba agora no fim do ano...
- Se vomecêa nã t'vesse idade p'a ser mê pai, ê logo l'e dava uma répla ô consoante... Mái, inda tenho um coisinho de vergonha na cara, nã sô c'm' vomecêa que diz todas as parvidades que l'e vêem à cabeça...
- Olha, dêxa-te lá de coisas e anda más é daí com-migo, qu' ê já passí ali p' o cemitéiro e agora vô-me àlém à praça do pêxe ver se compro umas sard'nhitas p'a assar, mái-logo. Se fosses homem p'ra isso, fazia-se uma assada os dôs, comprava-se um garrafanito de vinho e entretinhames-se um pôcachinho, qu' isto 'tá munto calor p'a se fazer alguma coisa fora de casa.
Aqui, vi logo adond' é qu' ele qu'ria chigar...
- Tamém 'tá bem. Atão, um compra o pêxe, o ôtre compr' ô vinho e a minha Maria faz lá a assada p' à gente. Com uma bela selada de tomates e popines, qu' ê já tenhe d' acolhêta. Só se tem de comprar tamém um p'mento ó dôs, qu' isso inda nã tenho.
E assim fazemos.
Nesse mê tempo que se foi ô pêxe, o ti Zé Caçapo nã se calô p'r tempo nenhum. Até que me desata a contar uma parte qu' ele diz que se dé cá na Vila com o Márt'e Sagrado. Ê cá nã sê se se dé se nã se deu. Béque-me quer par'cer mái p' ô não que p' ô sim.
'Tô em ferros p'a l'es contar, mái sinto-me assim um coisinho embatucado qu' ê nã quero ofender nem o santinho, nem o padre dessa altura e, inda menes, a famila, c'm' à minha Maria, que se pelam p'r o S. Sabastião.
Olhem, sem ofensa e só p'r graça, aqui vai, tal e qual com-m' ele ma contô:
- Nôtres tempes, ajuntava-se semp'e um poder de famila p'a levar o andor do Márt'e Sagrado p' à Ingreja Matriz, mái, désna d' há uns anes p'a cá, tem sido uns trabalhos p'a arrenjar homens que cheguem p'a pegar no andor.
- Ah, sim, ti Zé? Atã e c'm' é que se têm desenrascado?
- Olha, parte das vezes, só têm par'cido quatro, méme à justa, p'a pegar cada um no sê lado...
- Atã, assim, têm que ser os mesmos a levá-lo désna da ingreja dele até à Matriz...
- Nem mái nem menes. Alguns, sã homens duma certa idade, pobrezinhos, chegam lá tôdes derrengados... E tu, Refóias, em Janêro, em chigando o dia, bem podias dar uma ajuda, que bom corpo tens...
Aqui, calí-me sem saber o qu' havera de d'zer. E ele voltô ô assunto:
- Mái, o pior foi aqui um destes anos atrás... Chigô-se ô dia de levar o santinho e nã par'ceu ninguém. Nã sê se foi o padre que nã apregoô na missa a tempo e horas, s' o qu' é que foi, ó s' é a famila que já nã 'tá p'a se mort'ficar p'r coisíssema nenhuma, o certo o certo é que nã havia quem levasse o santinho.
- Atã e daí, o qu' é que fazeram?
- Olha, nã sê te conte se não. O que me d'zeram até me custa a engolir, sê cá se taria sido assim ó não...
- Ó homem, conte à vontade... Ist' é uma conversa só p' à gente os dôs...
- Pôs atão, des qu' o bom do padre esperô p' à nôte, prantô com o santo drento duma gòrpelha, pôse-a im cimba burro e, no dia a seguir, q'ondo o pessoal chigô à missa, já lá 'tava o Márt'e Sagrado na Ingreja Matriz com o andor todo bem enfêtado e pronto p' à famila ir lá rezar e se consolar do ver.
- Bençoado!... Desenrascô-se bem. Quem saria esse padre?
- Refóias, diz-se o milagre mái nã s' alomea o santo...
- Ó t' Zé, tem toda a rezão. Agora falô bem, sa senhora.
- O pior foi o falatóiro que p'r 'í andô. Qu' isto há semp'e quem 'teja pronto p'a d'zer das suas, tenha rezão ó nã tenha. E, d'zendo a verdade, o santinho semp'e ia melhor se fosse numa via com condiçõs... Que foi o que, béque-me, já fazeram daí p'ra cá. Trazeram-no, munto bem embrulhado, num à't'móvel e pronto.
- Olhe, cá p'ra mim, tanto vai bem duma manêra c'm' dôtra. E quem nã gostar qu' o vá lá ajudar a trazer... Tamém Jesus chigô amontado num burro a Jerusalém, no D'mingo de Ramos, e tôdes l'e bateram palmas...
- Lá isso é verdade. Mái os tempes tamém eram ôtres...
E com isto se foi passando o tempo. A minha Maria fez uma sardinhada que foi um encanto. Enché-se tôdes a barriga em forte e quái que se desgotô o garrafanito, com a ajuda de mái dôs amigues qu' apar'ceram com o belo chêro qu' as sardinhas dêtavam...
E vô-me f'car p'r qui, que mecêas jã nã m' hõ-de dar aturado.
Haja saúde da boa e até um dia destes.
Isto pega-se, querido amigo de Monchique! Coisas nossas e da nossa terra, é um prazer tê-lo perto e longe, ao sabor de um clic!
ResponderEliminarConfesso que me é difícil seguir toda a cadência do seu escrever! Mas os seus olhos e o que eles vêem encantam-me também!
Só tive oportunidade de entrar nesta pequena ermida numa tarde de S. Martinho, há alguns anos atrás, e fiquei espantada ao deparar-me com um magnífico altar com tratamentos plástico e cromático muito peculiares, em relação ao que se encontra nos restantes edifícios religiosos de Monchique.
ResponderEliminarA imagem de Nossa Senhora do Desterro com o Menino é acompanhada de uma história melancólica, de um velho frade franciscano que chorava copiosamente durante a procissão que a "desterrou" do Convento para a capela de S. Sebastião.
Já o S. Sebastião crivado de setas (que, devido ao seu valor, costumam estar guardadas) é associado a uma comovente lenda de fé que conta que em anos de peste no antigo núcleo da vila (séculos XVII e XIX), passando em procissão pela Rua das Cavalgas "durante nove dias, ao terceiro tinha parado a moléstia e ao último estavam quase todos restabelecidos" (GASCON, Subsídios Para a Monografia de Monchique, 1955, p.242).
Desta forma podemos verificar o valor simbólico das imagens que encerra no seu interior, enquanto fontes de lenda e espiritualidade popular, e que, justamente por esse facto, mereciam ser contemplados mais frequentemente.
Bonita imagem, com o Convento em último plano, e as andorinhas voando (outro motivo gerador de saudades).
Infelizmente ainda nunca tive a oportunidade de lá ir, embora gostasse muito de ver a Igrejinha. Interessante saber essas histórias contadas pelo povo.
ResponderEliminarBom trabalho!
ResponderEliminarParabéns.
bfs
Pedro
Ora cá está mais um ponto de visita p a minha semana de férias... Ando a chegar à conclusão de que não conheço um décimo de Monchique! E que rico guia que nós temos no compadre Refóias! Boa semana!
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