28 julho 2006

A Fonte da Amorêra e a Estrada de Sabóia - O resto

Fonte da Amoreira

A Fonte da Amorêra é uma fresquidão no mê daquele sequêro da Estrada de Sabóia.

Ê cá sê que bem muntos de vomecêas já conhecia aquela parte da Estrada de Sabóia e, calhando, melhor do qu' a mim, mái c'm' à acho bem caçada, méme nã sendo bem assim, contí-a cá à minha manêra.

Uma pessoa sabe qu' aquela estrada tem assim aquelas curvas todas pre mode, naquele tempo, nã haver nem mánicas nem d'nhêro p'a fazer uma coisa mái ô d'rêto e nôtras condiçõs, mái ist' é uma coisa qu' a famila aqui de Monchique conta só p'r graça e p'a se desfazer nos estrangêros e nos capatazes, os que mandam...

Pôs, até nã há muntos anos, p'a s' abalar de Monchique p'a qualquer banda só se tinha duas estradas. Uma lá p' ô Algarve, p'a Vila Nova, e esta, a de Sabóia, p'a norte, p' ô Alentejo. Era uma estrada munto emportante p' à gente e de munto movimento, nã cudem.

Olhem, eram tã emportante ó tã pôco que se deram ô trabalho de fazer, logo, a Fonte da Amorêra p'a ela ser mái bonita, e, òdespôs, a Casa de Cantonêros p' à manterem em condiçõs c'm' deve de ser. Andavam, tôd' ô ano, nã sê q'ontos homens a trabalhar nela e nas ôtras de Marmelete ô Alferce e de Monchique a Portimão.

Ele há inda ôtra fonte nesta dita estrada, mái já fica p'a lá da P'rtela dos Cáibros e, atão, já pertence lá ôs nossos v'zinhos da Nave Redonda, que sã os alentejanos mái perto qu' a gente tem.

Mái voltando à da Amorêra, aquilo é uma coisa do mái jêtoso que pode haver. Mal empregado, p'a mê gosto bem se vê, a água ser tã ferrosa. É menino, aquilo, uma pessoa bebe lá uma sede d' água, fica com um peso na barriga que custa a poder com ela... Ora, ora, atã s' aquilo tem ferro masturado, o qu' é que l' era de esperar...

Fonte da Amoreira

A água da Fonte da Amorêra, de ferrosa que é, dêxa tudo marelo...

Nã vêem com-m' ela dêxa as paredes do tãinque todas marelas?!... Melhor d'zendo, aquilo até é mái p' ô castanho que p' ô marelo e, pre mode isso, béque-me tem assim um jêto de 'tar tudo labuçado. Mái nã é. É méme o ferro que se mete na pedra e encarde aquilo tudo.

Agora digam-me lá q'ont' é que nã vale uma pessoa vir no sê belo a't'móvel, toda afogueada, à fim d' atravessar parte do Alentejo, cansado da viaja, chêo de secura, aparar ali um pôco, b'ber uma sede d' água e rafrescar-se à sombra daquelas amorêras qu' ali 'tão...

Isto p'a já nã falar nos que vinham de b'cicleta a podal ó no sê carro de besta... Os animazes tamém tinham precisão de bober e sossegar um pôco p'a arrenjarem forças p' ô resto da viaja até à Vila, qu' aquilo ind' é uma ladêra marafada.

Que naquele tempo, 'tava lá uma amorêra bem grande, e dava amoras, home, mái, p'lo jêto, perdé-se e eles despuseram estas duas, que sã bonitas, isso são, mái nã sê se sarã de q'ôlidade de dar fruta ó se ficam-se só p'las folhas p' ôs b'chinhes da seda...

Elas, de falta d' água, nã se podem quêxar, qu' ela corre-l'e ali p' às raízes tôd' ô ano e se nã prosassem p'r ela ser ferrosa, tamém, calhando, nã nas tinham desposto lá.

E uma coisa l' afianço ê cá. Aqui, tã perto, nã há ôtra fonte em estrada nenhuma que chegue ôs butes desta... Com água sempre a correr, sombra à farta e uma preção de bancos que dã p'a um poder de famila s' assantar, melhor nã há.

E aqueles ladrilhos pintados d' azul, que se vê méme que foram fêtos p'r quem sabia... Munto gosto ê cá d' olhar p' àquilo. É que, nã cudem, 'tá quái a históira toda de com-m' é fazeram a estrada.

Fonte da Amoreira

Olhem-me só p'a este belo cilindro a vapor qu' eles usavam naquele tempo...

Fonte da Amoreira

Nestes ladrilhos da Fonte da Amorêra vê-se bem o qu' eles passaram p'a fazer a Estrada de Sabóia.

Ele é o cilindro a vapor, a máquina de derregar o alcatrão, a fogo de lenha, e estramalhá-lo no chão, a vagoneta p'a levar a brita e uma coisa já munto moderna nesse tempo, uma camineta de carga basculante...

E o melhor de tudo, a famila que lá entortô bem a espinha: o carrêro, com a su junta de bois, o cavador de picareta e d' inxada, os homens da pá, do malho, do carrinho de mão, da vagoneta, do alcatrão e os chòferes do cilindro e da camineta de carga...

Só lá falta o capataz a acossar a cabeça e o inglês, de cachimbo na boca, assentado na tal cadêra d' encosto, de perna cruzada a ler o jornal Times (o Zé Manel é que me disse qu' os ingleses usam a ler um jornal com este nome lá no hotel adonde ele trabalha)...

Nã sê que jêto nã nos porem lá... Quem saber que diga qu' ê cá nã m' astrevo.

Mái, com respêto a mangação, alembrí-me, assim sem ter nada que ver, duma parte que se nesta dita estrada com o ti Armindo da Boavista, um belo amigo que já cá nã 'tá, que Dés o tenha.

O homem p' além de samear a su fazenda, tamém tinha um carro de besta, todo pintadinho, com umas lindas letras A ~ B (Armindo da Boavista) munto bem desenhadas no taipal de trás, e uma mula velha, já fêta num caneco, molengona no andar, que qualquer um a aguentava a passo sem ter míngua de se mortificar nada.

Inda p'ra más, o ti Armindo era compridão e tinha uma bela bócha, daquelas que p'a se susterem tem que se puxar o cós das calças p'ra baxo e apertar o cinto bem uns quatro ó cinco dedos p'r baxo do embigo.

Pôs o ti Armindo abalô, uma nôte, com a su mula, a "Lesma", e o sê carro de besta carregado com cinco ó sês bacorinhos, filhos da sigunda barriga duma escravelhêra preta qu' ele tinha comprado na barrêra de Dezembro, em Marmelete, há uns três anos, p'a ver s' os dava vendido num mercado que faziam p' ali no dia a seguir, béque-me im Santa Clara ó pr' aí.

Foi andando, foi andando, tã penas desandô do hospital p' ô lado da Bica Boa, já ás tantas da madrugada e com quái três horas de caminho fêto, a mula semp'e naquele passo, os porcalhos todos enroscados uns nos ôtres que ninguém nos ôvia, ele ferra a dormir assantado na tábua da frente do carro e com as arreatas nas mãs.

Ele passô à Portela da Cernada, passô à Casa de Cantonêros e à Cantina, passô ô desvio p' à Perna da Negra, nem dava remôr. E a mula semp'e a andar, qu' ela conhecia bem o caminho.

Casa de Cantoneiros

O ti Armindo ia num sono tã d'rmente que passô à Casa dos Cantonêros e nunca dé p'r ela.

Vai, vai, a alenterna qu' ele levava ali de lado a servir de luz, acaba-se-l'e o pitrol, quéma a torcida e apaga-se dum todo. O homem tinha-se desquecido d' a encher entes d' abalar, mái tamém que mal fez?... Désna de casa até à Fonte da Amorêra, nã chigô a se cruzar fosse com que via fosse...

E a mula sempre a andar no sê passo dela. Méme devagar, em menes dum farol, 'tava na decida p' à Fonte da Amorêra.

Aí, o bicho vi-se em traquetes p'a sigurar o carro, qu' o ti Armindo, acarrado no sono com-m' ele ia qu' até roncava, nã l' afincô os travõs nas rodas com a manivela que 'tá ali ô lado e serve p'ra isso.

Mái c'm' tinha sido calçada com umas ferraduras novas inda fazia duas semanas, lá foi, lá foi e aguentô-se. As marcas dos rompantes é que f'caram no alcatrão, que, passados meses, inda se davam visto ...

Mái, a pobre da mula dé-l'e sede, e conhecia muitíssemo de bem a fonte, em chigando ô mê da curva, guina, de chofre, p' à esquerda e enfia p'la calçada adrento até ô pé da bica.

O ti Armindo, com os gangueõs qu' o carro dé a assubir o lancil, acorda ensarampantado, méme a tempo de nã ser jogado p' ô mê do chão, enq'onto os bác'ros faziam uma gornida que metia medo e já andavam ôs saltos embirrando uns com os ôtres e com as canoiras e as botas do dono. Diz logo:

- Aí, mula!.. Toma chó!... Mái atã, 'tás parva ó quem?!... Queres bober? Bebe p' aí avontade... Mula marafada que me fez panhar cá uma rabana...

O pior é qu' os porquecos, tôd' ô caminho, tinha estrumado lá drento e as botas do homem f'caram até luzidias com a graxa fêta da prequêra deles. E o fedorum qu' aquilo dêtava... Punhana mundo! Até uma lonjura duns dez ó quinze metros nã se dava 'tado... E ele, c'm' aquilo era de nôte e bem de nôte, nã dé p'r nada.

Ô fim dela bober a água que quis, lá encaminhô a "Lesma" p' à estrada ôtra vez, os bacoralhos lá s' ac'm'daram e a viaja continuô com o méme andamento, qu' a mula nã dava más.

E o ti Armindo foi ô mercado adonde tinha qu' ir, chigô lá méme ô amanhecer, e, inda entes da hora rigular, já tinha vendido os bacoralhos tôdes p'r bom preço, c'mé lá um belo arjamolho fresquinho numa barreca do mercado, acompanhado dum copo de vinho tinto, e, ô fim da tarde, voltô p'ra casa na méma via.

Carro de Besta

O carro de besta do ti Armindo da Boavista dava ares a este. Mái 'tava um coisinho mái sujo pre mode a carga que levava...

Dés l'es dê saúde e espàireçam no fim de semana.

25 julho 2006

A Fonte da Amorêra e a Estrada de Sabóia

Fonte da Amoreira

A Fonte da Amorêra 'tá no mê duma curva tã arrebatada, qu' uma pessoa, nã aparando, quái que nem tem tempo da ver.

Na estrada de Sabóia, já quái a chigar à partilha do concelho, desapercebida numa curva, dos muntos centos delas qu' ela tem, 'tá a Fonte da Amorêra.

P'a quem nã prosa, calhando a chigar lá já mê almareado, passa p'r ela e é d' adregue ter tempo da ver, méme que vá com os olhos bem abertos.

Aquela marafada daquela estrada des que foi fêta p'r um engenhêro inglês que, p'lo jêto, era um homem que sabia munto de como se faz estradas, mái cá da nossa língua nem tampôco sabia uma palavrinha p' à amostra...

De manêras que, foi chemado do estrangêro p'a vir resolver aquele grande enredo qu' era, naquele tempo, - e já lá vão oitenta anos, perto ó certo - atravessar uma serra destas com uma estrada fêta à som da força dos braços de quem lá trabalhô.

Até aqui, inda vá que nã vá. Tirando a mania, que já naquele tempo tinham, qu' a gente somos tôdes parvos e, p'a tudo tem que vir famila de fora, qu' eles é que sabem, já qu' os de cá nã t'veram coraja de se jogar a uma obra daquelas...

Nã vêem qu' inda hoje é a méma coisa?... Até p'a insinar meia dúiza de jogadores a dar três pontapés na bola e a jogarem-se p' ô chão fingindo que l'e passam rastêras, que nem no jogo do estravanca, tem que vir um brasilêro, com mái nã sê q'ontos ajudantes, ganharem cá, num mês, umas fortunas tã grandes ó tã pequenas, qu' ê cá e a minha Maria nunca se chega a dar ganhado tanto im toda a vida...

E anda tudo a l'e fazer miécos e a l' agradecer e a l'e pedir, p'r grande favor, que fique p'r cá o tempo que qu'ser... E ele a se fazer caro.

Ó mês belos amigos!... Sarê só ê cá que 'tô parvo ó 'tamos tôdes?...

Bom, mái voltando à estrada de Sabóia, 'tava ê a d'zer qu' o inglês era capaz de ser um belo engenhêro de fama, mái da nossa fala nã sabia coisíssema nenhuma.

Ora, os trabalhadores eram tôdes de cá e o capataz tamém. S' o engenhêro nã sabia falar português, eles inda menes sabiam falar inglês.

Desataram a cavar p'r aquela serra afora, a pásnas tantas, vai o capataz ô pé do inglês, põe-se nos bicos dos pés, olha lá p'ra cima p'à cara dele e prècura-l'e:

- Atã e agora, c'm' é que se faz? Dá-se a volta ô cerro ó corta-se a barrêra a d'rêto?

E o inglês, ensampado, que nã apanhava nada do qu' ele 'tava a d'zer, respondia com aquele jêto deles munto brandinho:

- Iésse.

Voltava o capataz p' ôs cavadores de picareta:

- Olhem, faz-se um "S". Toca a cavar, qu' inda temos duas horas de sol...

Casa dos cantoneiros

Esta casa dos cantoneiros tamém foi fêta numa curva arrebatada. Até dá pàxão vê-la nesta desgraça...

Ô fim d' uns três ó quatro dias, chegam à ôtra chapada da banda de lá, o capataz vê-se nos mémes trabalhos que já se tinha visto. Sigura na aba do chapéu com dôs dedos, alevanta-o só um coisinho, e põe-se a escrafunchar na cabeça com os ôtres três, sem saber o que havera de fazer e em traquetes p'r ter qu' ir falar ôtra vez com o inglês.

Inda l'e correram umas bagas de suôr à testa abaxo, dé umas passadinhas p' à frente, mái estancô. Voltô-se p' ô lado, fez que 'tava a pensar, nã fossem os ôtres d'zer qu' ele 'tava enrascado p'r ter qu' ir fazer aquele serviço.

Tomô fôl'go, pega nele e lá vai caminho do inglês. Encontr'-ô munto bem assentado numa cadêra d' encosto, à sombra dum madronhêro já bem antigo, qu' inda hoje lá 'taria se nã fosse os fôgues qu' eles têm tiçado aí p'r tôd' ô lado, a ler um livro.

- Senhor ingenhêro, além naquela chapada, calhando, era melhor a gente traçar aquilo a d'rêto, senã fica lá uma curva munto arrebatada. Inda p'ra más, é um coisinho a decer e assobe logo do ôtr' lado. O qu' é que me diz, corta-se ó arrodêa-se?

O inglês olha p'ra ele, franze a testa, passa a mão p'los quêxos e alevanta as vistas p' ô céu c'm' quem diz:

- O qu' é que sará qu' este paspalho 'tá p' ali a d'zer... 'Tava ê cá tã entretido a ler o mê livrinho, vem esta aventêsma p' aqui m' impertenecer...

Dé mái uma chupadela no cachimbo, assoprô o fumo p'lo ôtro canto da boca e, a cabo dum pôco, responde-l'e no mémo tom de sempre:

- Iésse!

- Olha, más um "S"... - Ramordeu o capataz, só p'ra ele, nã fosse o ôtro ôvir.

Vai p' ôs cavadores, assim com uma bela rabeada lá drento, pre mode o inglês nã ter arrecebido bem a rezão dele, e arrulha, c'm' s' eles ' t'vessem a uma lonjura duns trinta ó q'ôrenta passos:

- Hoje já não, qu' o sol 'tá-se a pôr, mái amanhã, ô romper d' a'rora, toca a cavar à roda do cerro!... Mái um "S", mandô ele. Agora arredondem aí o servicinho e, q'ondo o sol se pôr, arrumem a ferramenta toda bem arrumadinha p'a nã se perder nada, ôviram bem?!...

E, já voltado p' ô ôtr' lado, p'a ninguém ôvir:

- Filho duma magana, munto gosta aquilo de curvas, rai's t'a parta!...

Bom, e a coisa foi andando, andando e, cada vez que chigavam a uma córga ó a mêo duma vertente, lá ia o capataz fazer a méma prècura ô inglês e a répla dele era semp'e a méma:

- Iésse!...

E aí 'tá a dexplicação p' àqueles ésses tôdes da estrada de Sabóia, com nã sê q'ontos centos de curvas a desembocar umas nas ôtras. Há quem saiba q'ontas são, más ê cá nunca me dí ô trabalho das contar, que, q'ondo lá passo, tomara ê nã almarear e desatar p' ali a ch'mar p'lo grigóiro...

S' haver quem saiba ô certo q'ontas são que diga, que munto l'a gradêço.

Mái atão, agora é que dí p'r ela...Era p'a l'es falar da Fonte da Amorêra e, no fim de contas, imbiquí com os ésses da estrada, nã passí disto. Mái dêxe qu' amanhã logo se fala do resto.

Fiquem-se na paz.

24 julho 2006

Marmelete: A Festa de S. Antóino foi munto ad'vertida

Festa de S. António

Nisto, chigô a banda a marchar ô som das modas que tocava. E bonitas qu' elas eram...

'Tava tã entretido com o jogo do bicho que, q'ondo dí p'r ela, já a banda 'tava quái ô pé de mim a tocar uma moda tã bonita qu' o que dava jêto era ir atrás dela a marchar, c'm' à gente se fazia lá no q'ôrtel de Tavira q'ondo se 'tava na tropa.

Nã sê se se o méme com o resta da famila que p' ali 'tava no palêo, mái, verdade se diga, qu' os que 'tavam influídos no jogo pôco caso fazeram e afincaram logo, ôtra vez, os olhos na lata que 'tava p'r cimba do porquinho da índia.

Ê cá, atão, barimbí-me no jogo e, q'ondo dí p'r mim, 'tava tamém a andar atrás da banda, ô mémo passo deles. Mái aquilo foi só uns passinhos até chigar em frente da esplanada.

Aí, sai-me ô caminho o Manel Zé do Pomar da Brèjêra, que 'tava ali a lambarear com o Jõquim do Cerro Alto, de cerveja na mão, olhos mortiços e cabeça a abanar im cimba dos ombros, acuados ô canto do balcão, fêto de dôs lavajos de calitro, tôrtos e arrachados, pregados im cima de quatro prumos grossos, atanchados no chão, a servirem de pés.

O Manelinho é um belo amigo, mái, q'ondo 'tá com uma bagadinha, e é má dele nã 'tar, é um caso sério p'a uma pessoa se ver livre dele. Cachamôrra, aquilo béque-me até é um coisinho de más... Joga-se a qualquer um, ele é abraços e mái abraços e vá de puxar a gente p' ô lado do balcão. Ora, p'a quem vê, até pode f'car a pensar em coisas ruins...

- Ó, mê belo amigo!... Há tant' ô tempo qu' a gente nã se 'tava juntos... Aprochêga-te lá pr' aqui e pede o que qu'seres, que vens na minha. Diz lá aí ô homem o qu' é que bebes, Refóias, vá...

- Ê sê cá o qu' é que beba... Béque-me, agora, nã me calhava nada, qu' inda 'tô a fazer a digestã...

- Qual digestã nem qual digestã... Um solvinho nã faz mal nenhum. Queres uma cervejinha? Vá uma média aqui p' ô mê amigo Refóias... Ó entes queres um calcezinho de quasequer coisa? Madronhêra, viske ó coisa assim...

Vendo que nã tinha salva, digo:

- Atã vá uma cervejalha. Mái das pequenas... Isso 'tarão munto frias? Dê-me dessas de fora do figoríf'c', que nã é só a digestã, é qu' ê tamém, com esta calma qu' a aí 'tá, em bebendo coisas munto frias, dá-me logo em doer goélas ó fico constipado.

- Quer cristal ó sagres? É as duas que se tem. - Prègunta o moço que 'tava a despachar.

- Isso, qualquer delas serve... Mái, podendo ser, vá lá uma cristal que, p'ra mê gosto, é um coisinho mái leve qu' à ôtra.

Jogo do bicho

A banda passô em par da esplanada que nem um relampo. Em menes de nada, já soava lá p'ra baxo...

Com isto tudo, ô pôr a cervejalha à boca, é que m' alembrí ôtra vez da banda que, naquele passo semp'e certo, tinha passado à rôpa toda e já soava tocando lá p'ra baxo. Inda me pus à escuta, mái com o cagaçal todo qu' ali 'tava e o Manelinho semp'e a empencer com-migo, nã dí apr'vêtado mái nada que t'vesse jêto... E tanto qu' ê cá gosto de bandas...

- Vá, já acabaste essa? Ponha aí mái três. Uma p'ra mim, ôtra p'r' ô Refóias e ôtra p'r' ô Jôquim. - Repisava o Manel Zé, em ferros p'a emborcar más uma.

- Ó Manelinho, sossega lá p' aí um coisinho, qu' inda ê 'tô a mê desta... Manda vir p'ra ti qu' agora pag' ê cá.

E o Jôquim, inda mái escarado qu' o Manelinho:

- Ê cá tamém bebo mái uma sagres. Das grandes. Que nã 'teja munto fresca...

E lá mandí vir a minha rodada:

- Atã vá, ponha lá aí duas médias e uma castelinha.

Castelinha, p'a quem nã sabe, é uma garrafinha d' água do castelo, daquelas mái pequenalhas, qu' é com-m' uma pessoa se defende deles q'ondo nã l'e calha b'ber e eles sã rançôsos que nã dêxam um homem da mão.

'Tava-se nisto, parêcem as m'lheres, que tinham f'cado lá de roda do jogo do bicho. Diz logo a minha Maria:

- Já 'tás nisso?!... A gente a pensar que tinhas ido com a banda e, no fim de contas, 'tás aí jogado à bobida...

- Isto foi só uma cervejinha, m'lher... Nã vês qu' encontrí aqui estes amigos...

- Olha lá, nã queres vir com a gente, qu' ê vô amostrar as coisas bonitas aqui de Marmelete às minhas amigas e tu semp'e davas companha...

Ora, nã foi coisa que se d'ssesse a surdos... Ê cá 'tava em pulgas p'a me ver livre deles, paguí a minha rodada e desandí logo dali.

Já do lado de fora, inda me despedi deles:

- Adés amigues... Bem que me calhava entreter aí mái um pôcachinho com os dôs, mái atão tenho aqui estas pessoas e tamém nã l'e posso fazer desfêta...

Jogo do bicho

Tirí este retrato à esplanada inda a famila 'tava quaí toda na missa. Digam lá que nã 'tava bem compôsta...

E abalí logo com elas nã fosse eles inda virem brigar com-migo p'a beber mái alguma cerveja, que nã me 'tava méme a dar cobiça nenhuma.

De manêras que foi-se andando, tramelando e vendo p'r lá tanta coisa bonita qu' há no Povo todo de Marmelete, qu' ê, em tendo jêto, logo l'es falo nisso tudo.

Hoje, p'a nã nos zucrinar munto, só vô apresentar aqui uma coisa qu' ê tenho devassado lá já muntas ocasiõs, mái, nã sê perquém, inda nã dí desmoído bem aquilo.

Ô descer p' ô Povo, ali adonde, nôtres tempos, 'tava aquela fonte d' água ferrosa com uma bica, qu' a gente, q'ondo se tinha vontade, ia-se lá bober uma sede d' água, fazeram uma casa e acabaram com aquele recanto qu' ê cá, nã era p'r nada, mái gostava ô bem fêto.

Dés tenha no céu quem fez esse trabalho, qu' era um bom amigo lá da R' Nova, que trabalhô munto, a vida corré-l'e bem e resôlvé-se ir morar p' ô Povo em vez de se manter no campo. E ninguém teve nada com isso, que cada um faz o quer à su vida.

Calhando p'a alembrar essa bica, fazeram esta fonte, toda moderna, qu' até parêce a gente que 'tá aí numa terra lá de baxo do Algarve...

Festa de S. António

Esta fonte, calhando, foi fêta p'a alembrar uma bica d' água ferrosa que, nôtres tempes, havia logo ali prebaxinho.

- Mái que fonte tã fina que 'tá aqui, Marizinha... E tem água que se possa bober?

Diz a Florbela, d' olhos esbugalhados, pensando qu' em Marmelete nã havera d' haver coisas assim tã p' ô fino.

- Tem, sa senhora!... Pode b'ber à vontade qu' isso é água da boa.

E a Florbela lá foi a ver se matava a sede. Tã penas chega lá ô pé, põe-se a olhar p' à bica, nã vê nada p'a abrir a tornêra, volta-se p'ra mim de braços abertos, c'm' quem diz:

- Mái atã o qu' é qu' ê faço p' à água correr?!...

- Veja bem aí da banda de lá qu' há-de 'tar aí um botanito. Acalque nele qu' a tornêra c'meça logo a dêtar água.

E ela assim fez. Acalca no botão, assim a água desata a correr. Vai, munto limpêra, com boca d'rêto à tornêra p'a bober, dá um chasnado e salta p'a trás munto depressa...

- Olhem-me só p'ra isto!... Já f'quí toda molhada... Atã nã vêem qu' a água corre p' à pedra e espirlita p'r tod' ô lado...

D'zendo a verdade, aquilo adonde a água cai há-de ter sido fêto mái p'a pôr lá um cântaro ó uma enfusa a aparelhar água do que p' à famila beber.

E assim a pobrezinha lá f'cô com os sapatinhos dela tôdes molhados. E eles qu' eram bem compridos, bicudos e com tacõs de mái de mê palmo, qu' ê inda 'tô p'a saber c'm' é qu' ela se dava sigurado im cimba daquilo...

E p'a arredondar isto, inda l'es digo uma coisa, só aqui pr' à gente:

A fonte pode ser munto bonita, munto moderna, munto cara e munto tudo aquilo que vomecêas qu'rerem, mái, nã l'e pareçam mal, ê cá gostava era da que lá 'tava entes de fazerem a casa e tinha aquela água ferrosa semp'e a correr nôte e dia.

E da Festa de Sant' Antóino 'tamos conversados.

A seguir vô-les falar dôtra fonte d' água ferrosa, a umas belas léguas desta, do mái bonito que pode ser e haver em fontes

Passem munto bem e até a gente se ver.

20 julho 2006

Marmelete: Festa de S. Antóino - O Jogo do Bicho

Jogo do Bicho

Este jogo do bicho 'tá munto bem caçado...

Logo prebaxinho da quermesse, 'tava a barreca do jogo do bicho. O qu' é qu' a gente havera de fazer... Foi-se ver se tinha-se alguma sorte ali. Aquilo é uma coisa tã ingraçada, qu' ê inda nunca vi im mái lado nenhum.

Olhem, 'tão ali uma preção de casolas pôstas à roda, cada qual com a sua carta im riba. Compra-se uma carta qu' a gente quêra lá ôs meçalhos que 'tã lá a vender. Ô fim das venderem todas, soltam o bicho lá no mêo, ele vai-se esconder numa casola, quem t'ver a carta igual à que 'tá nessa casola ganha uma garrafa de bobida.

O bicho é um porcalho da índia, daqueles que parêcem uns ratos, assim malhados às cores, mái munto mansinhos que nã fazem mal a ninguém. Méme assim inda ôvi p'r lá umas de fora, todas finas, com os bêços munto pintados, de manga à cava e os pêtos quái tôdes de fora, a gritarem q'ondo viram o b'chinho sair debaxo da lata.

- Ai, que medo... E s' ele foge cá p'ra fora?!... Nã sê c'm' dã pegado numa coisa daquelas e nã ficam em pele de galinha c'm' ê já 'tô...

D'zia uma, enq'onto fugia p'a trás e esbugalhava os olhos duma tal manêra, que par'cia uma c'ruja, ô méme tempo que fazia uns miécos tã grandes ó tã pequenos com a boca qu' ê pensí qu' a m'lher inda l' ia dar p' ali alguma passaja...

Ele hôve logo p'a lá um que s' apr'vêtô e, c'm' quem nã quer a coisa, fez assim a amenção da sigurar p'a ela nã cair e inda l'e jogô as unhas ali a um braço e quái qu' s' encostô a ela, mái ela fez-se assim munto incarnada e des que já 'tava boa e que munt' ôbrigado que nã tinha preciso de mái nada...

Mái voltando ô jogo, dig' p' à minha Maria e p' às amigas:

- Ó meninas, vamos lá apr'vêtar agora, qu' os mecinhes inda têm ali umas q'ontas cartas p'a vender, inda dá escolha. Dá-me lá 'í uma, Telmo.

- Só uma, ti Refóias?!...

- Atã a c'm' é que vendes isso? Vê lá nã te descuides no preço qu' ê tenho pôco d'nhêro...

- Ist' é só a cinquenta cêntimes cada uma. Vá, compre lá mái umas q'ontas qu' é p'a l'e sair a garrafa. Nã seja fòníca...

- Ah, marafado... Tal é essa conversa, hã?!... Atã vá lá. Passa p'ra cá mái três, qu' é ali p' às m'lheres tamém. Q'ont' é qu' isso dá?

- É só dôs eros.

Lá paguí, dí uma a cada m'lher e f'quí com o cavalo de espadas, qu' é uma carta qu' ê béque-me tenho a mania que me dá sorte.

Os meçalhos lá foram vendendo uma carta a um, ôtra a ôtro e ê dí-me em influir com o raio do jogo. Chamo ôtra vez o Telmo:

- Olha lá, vende-me lá 'í mái umas duas... Quero a manilha de paus e a sota de copas.

- Ah, assim 'tá bem, ti Refóias... Assim já vô d'zer ô mê avó que mecêa dé-me aqui uma bela ajuda a vender as cartas. Ele há-de f'car todo contente qu' ele é munto sê amigo.

- Ora se é... Atã andô-se juntos na escola da R' Nova, já vai p' cinquenta anos. Olha faz méme agora im Ôtubro cinquenta anos qu' a gente p'a lá antrô os dôs. Inda foi p' àquela escola antiga. Despôs disso, já fazeram uma nova e, méme essa, já a fecharam tamém...

E, assim, ôs pôcos, lá foram vendendo as cartas todas e chigô a hora de dêxar o b'chinho sair de lá de baxo da lata.

Mái o quem... Atã o Telmo, pr'mêro pega num tanchôto qu' eles tinham ali, afinca com umas tarôcadas no fundo da lata, quem nã qu'ria 'tar lá de baxo era ê cá... Pobrezinho do bicho havera de f'car c'm' parvo.

- Eh, Telmo, nã mates logo o animal, senã c'm' é qu' ele inda dá antrado p' alguma casola... Puxa-l'e já a lata p'a cima, vá...

Grita-l'e um homenzinho que 'tava tamém à espera de ganhar uma garrafinha. Ê nã no conheço bem, mái ele é béque-me ali dos lados da Mariôila, se nã 'tô im erro. Nã sê bem de que familas, mái é daí.

Jogo do bicho

Q'ondo l'e tiraram a lata de cimba, o b'chalho f'cô sem saber p'a que lado havera se virar...

Atão, puxam a lata p'a cima, qual bicho nem bicho... O desinfeliz, com o cagaiço que panhô, tinha afincado as unhas do lado de drento da lata e lá 'tava pindurado que ninguêm o tirava dali.

Vá a lata p' ô chão ôtra vez e mái umas bordanadas im forte.

Aí, o coitadalho há-de ter f'cado emparvoado de todo, já nã teve acção p'a mái nada senã f'car ali, no mê do chão, ensampado, sem saber p'a que lado se virar. Inda me dé quái pena do pobre-triste.

Tamém nã era preciso tanchar tamanh' às cachêradas na lata... 'Tá bem que nã é no animalzinho, é na lata, mái 'tá bom de ver qu' ele há-de ter panhado cá uma cúifa...

Mái, à fim dum belo pôco, dé-l'e p'a olhar p'a um lado e p'a ôtro, inda se virô p' àdonde 'tava o cavalo de espadas. Punhana, pensí logo:

- Querem ver que vai ser desta qu' o marafado se vai infiar méme na casola qu' ê tenho a carta...

Vai ele, dá dôs passinhos mái p' ô pé da casola.

- Ai, Maria qu' inda se leva daqui uma garrafinha de bobida da fina... Até já me 'tô a lember...

- Cala-te aí, senã ele panha medo e inda vai p' ô ôt' lado...

Nã fosse ela d'zer aquilo mái depressa, assim ele se volta ô contráiro, abala a fugir e pronto... Lá se foi a garrafa... Enfiô na do dez de espadas, o marafado...

Jogo do bicho

O malsoado do bicho foi-se logo infiar na casola do dez de espadas, qu' era a carta qu' ê cã nã tinha...

- Ah, gradessíssem' ô saganheta!... Atã 'teve quái a antrar p' à minha e, despôs, faz-me uma parte destas?!... E logo desta vez qu' ê tinha comprado uma preçanada de cartas...

E más ainda. É qu' o que tinha o dez de espadas era um badalo de fora, que ninguém no conhecia e, inda p'ra más, só tinha gastado dinhêro numa carta...

Ê nã sê, ele lá se rapimpô com a garrafinha de vinho do porto e a gente f'cô-l'e a fazer cruzes... O qu' é que s' havera de fazer? Teve-se que ter pacência...

Mái a festa inda nã tinha acabado.

'Tava ê cá inda com aquela pàxão e a luzir o olho p'la garrafinha, dô em ôvir ôtra vez a banda béque-me a vir d'rêto à gente. E era méme.

Festa de S. António

Q' ondo menes ê cá esperava, a banda desatô a tocar e até me desqueci da garrafa que nã ganhí...

E, em podendo, logo l'es conto o resto.

Sejam munto bem par'cidos e Dés l'e dê saúde e sorte.

19 julho 2006

Marmelete: Festa de S. Antóino - A Quermesse

Festa de S. António

A quermesse e a esplanada, com o chêrinho a ramaja de calitro, até apeteciam...

Tã penas a precissão chigô ô fim e tirí lá os mês retrates na ermida de Sant' Antóino, pego em mim, dô vaia à minha Maria e às duas amigas dela lá de baxo de Vila Nova, que par'ceram p'r cá, e toca a andar caminho lá debaxo d' adonde a gente se podia ad'vertir ô consoante da festa.

A pr'mêra coisa adonde s' embicô logo foi a carmesse. Toda munto bem aconchegadinha com ramaja de calitro e uns enfêtes de cores qu' aquilo só o chêrinho era um consôlo q'onto más o resto, tudo com cores do mái bonito que podia ser.

É menino, aquilo era quái só m'lherio, tudo jogado a comprar b'lhetes, qu' as meçalhas que lá 'tavam viam-se em traquetes p'a dar agu-ento a despachar os fregueses tôdes...

Ora, ê cá tinha-me desquècido do mê chapéu no a't'móvem da amiga da minha Maria, a Florbela. É um abirum d´aba larga, qu' ê uso a levar só assim em dias de festa q'ondo o sol 'tá munto forte.

Enq'onto esperava e nã esperava que me vendessem p' ali um punhado de b'lhetes, o sol dé-me em acalar na cabeça, já o suôr me escorria ô cachaço abaxo e aquilo nã me 'tava a calhar lá munto bem. Digo:

- Ó menina, veja lá se me despacha tamém aqui a mim, qu' ê tenho o sol p'r trás e isto nã é grande coisa 'tar assim à torrêra sem nada na cabeça...

- Tenha calma ti Refóias, atã nã vê qu' ê 'tô a atender estas pessoas que chigaram pr'mêro... Ê já vô-me aí.

- Atã, veja lá se nã amarrôa só 'í p'r esse lado, qu' ê já 'tô aqui empeçado com esta calma.

Mái, naquilo, foram-se embora umas que 'tava ali do lado da sombra, mái a palear qu' a comprar b'lhetes, e a gente os quatro nã se dêxô fugir a ocasião d' ir logo p'a lá, que semp'e se 'tava mái à fresca.

Até qu' a moça lá s' arresolveu a vir p' à rés da gente. Aí, jogames-se tôdes ôs b'lhetes im forte. Ê cá comprí logo alguns vinte... 'Tá bem qu' aquilo eram assim mái p' ô barato que p 'ô caro, mái semp'e me custaram um ero...

Quermesse

Aquilo era só comprar b'lhetes e desenrolar neles...

- Vá Maria, desembrulha aí neles à vontade!... Dêxa lá a ver o qu' é que sai aqui à gente... Isto, com tanto prém'o àlém naquelas pelhêras, algum há-de sair. Ê nã uso a ser munto afort'nado nisto, mái tu, Maria, tens semp'e mái sorte qu' um cã' de caça, desenrola aí neles...

- Ó homem, nã faças tanto lanedo. O qu' é qu' a famila vai d'zer?... Pensam que tu já 'tás com um copinho. E quem sabe lá se nã 'tás... Enq'onto ê fui ali à sacr'stia, com a Florbela e a Zèlinha, dar-se uma esmola p' ô Sant' Antóino a ver s' ele a aux'lêa com um namorado qu' ela arrenjô agora, calhando, bebeste-l'e p' aí alguma coisa com os tês amigues...

- Eh'q! Que conversa é essa?!... 'Tive semp'e ali à porta da ingreja a ver a mús'ca chigar. E tocaram-l'e ali umas modas méme boas...

E vá de desenrolar b'lhetes. Tudo branco, tudo branco...

Nisto, a minha Maria:

- Olha, cá 'tá um!... É o trazentes e onze. Ai que bom. Que sará qu' ê vô ganhar...

- Ê nã disse?!... Esta m'lher, p' ô lado dela é que corre tudo...

- Cala-te, cala-te... Que tu, uma ocasião, tamém te saíu nã sê o quem lá na fêra de Monchique.

- Ó menina! Menina!... Venha cá qu' a minha Maria já tem aqui um com prém'o. É o trazentes e onze.

E a meçalha lá vêo, pega no b'lhete e vai p' ô lado de lá. P'lo jêto, pôs-se p'a lá a vender b'lhetes a ôtres, nunca mái par'cia e ê já nem na 'tava a ver aquilo bem. Até parí de derenlorar b'lhetes e tudo. Pensí:

- Querem ver qu' o raça da moça inda me perde p' além o b'lhete e se desquece da gente... Anda-se, anda-se, fica-se sem prém'o denhum.

- Ó homem nã sejas desensofrido. A mecinha já vem. 'Pera aí...

- Olha, ê nã m' ent'ressa. Era o trazentes e onze e nã me venham cá com coisas...

Até qu' ela lá s' arresolveu e par'ceu com uma coisalha na mão, pequenalha, mái des que de munto valor:

- Aqui tem, ti Maria. Um galo im loiça da China qu' é p'a mecêa pôr o azête. Pega-l'e p'r o rabo e despeja-o p'r o bico. Nã vê?

Quermesse

À minha Maria saí-l'e um belo galo em loiça chinesa...

- Most'e lá. Ah... Olha que coisa mái jêtosinha.

- Cudado, nã dêxes cair isso, Maria. Olha que s' a rapariga diz qu' isso é da China, há-de ser coisa de munto d'nhêro... Qu' ê semp'e tenho ôvido d'zer qu' as loiças do Oriente sã do melhor que há.

E, p'a d'zer a verdade, aquilo lá nos pés do galo tem uns gatafunhos qu' ê nã dô lido e, ô lado, 'tá: "Made in China".

E se 'tá lá a d'zer isso é qu' aquilo vêo méme da China e há-de custar um belo d'nhêro a qualquer um qu' o quêra comprar.

De manêras qu' inda se desembrulhô o resto dos b'lhetes, elas compraram mái uma pagela deles e 'tavam tôdes brancos, mái foi-se charolando e q'onto mái se comprava mái se perdia. Nã saíu mái coisíssema nenhuma nem a mim nem a elas...

Digo ê cá:

- Vames más é p'a ôt' lado qu' isto aqui já dé o que tinha a dar... 'Tá bem qu' o tê prém'o foi bom, mái s' a gente se desaprecata, inda se gasta o qu' ele vale. Se nã ser más...

E assim fazemos.

Saca desenlaca, logo da banda de baxo, 'tava a barreca do jogo do bicho... Ora, f'camos logo lá caídos.

Más iss' ê logo l'es conto amanhã, qu' é p' a nã nos impertenecer munto. Mái nã fiquem a cismar qu' é o jogo do pàlito, que nã é. É ôtro.

Atã, fiquem-se com Dés.

Festa de S. António

Aquilo foi desenrolar b'lhetes até a gente se fartar...

18 julho 2006

Marmelete: Festa de S. Antóino - A Precissão

Andor de S. António

A precissão saíu da Matriz à hora da calma, mái ninguém se f'cô.

Méme debaxo dum calor parvo, que só apetecia era a gente s' espòjar a uma sombra e dormir uma folga, a festa de Sant' Antóino ajuntô p'a lá famila im Marmelete qu' aquilo mái par'cia uma terra lá debaxo do Algarve, d' ô pé da praia, qu' ôtra coisa.

Nã l'es digo nada... Aquilo meteu désna da parte lá da ingreja, com cerimóinas e precissõs, com banda a tocar música e tudo, à ôtra parte da brincadêra, com esplanada, quermesse, cantigas, rancho e ê sê cá que más...

E, já agora, c'meço p'r l'es falar da precissão do D'mingo, qu' é assim béque-me a parte que dá mái nas vistas, q'ondo o santinho é levado de volta p' à ermida dele.

Olhe, ele hôve p'r lá uns q'ontos que se quêxavam do senhor Prior ter fêto aquilo às quatro da tarde, debaxo duma soàlhêra qu' ia tudo esbraseado. Más ê cá até que nã me parêce munto mal isso ser assim na força do calor. E dig'-le já perquém.

Logo, qu' a gente aqui da serra já se 'tá fêtos a andar às tensas de quasequer tempo, seja ele à torrêra do sol ó debaxo de chuva, frio e vento seco ó humidoso.

Despôs, que se tem tôdes que fazer penitêinça p'las nossas belharetas, e castigar a nossa orgada qu' é p' à ôtra vez se ter um coisinho mái de juízo.

E, tamém, qu' assim, q'ondo chega mái à tardinha, com a fresca, já se 'tá livres p' a ir p' à quermesse comprar uns b'lhetinhes àquelas meninas tã bonitas que lá 'tão e, òdespôs, sentarmes um pôcachinho na esplanada, p'a se beber uns sôlvinhos com os nossos amigues. Atã, nã é verdade?!..

Andor de S. António

Quái ô fim da ladêra, os homens já vinham um coisinho suados.

O que l'es sê d'zer é que nã faltaram homens p'a pegar no andor e famila com fartura p'a ir na precissão. Toda a gente rezava e cantava consoante aquilo qu' o senhor Prior fazia e béque-me ia tudo contente que nem s' alembravam qu' o sol l'es 'tava a acalar em forte naquelas cabeças desc'rapuçadas.

Em menes de nada tinham corrido parte do povo, p'r aquelas ruas bem pertadas que já hõ-de ser assim désna que Marmelete começô (se qu'rerem saber como com-m' é qu' isso foi, acalquem aqui e lá adonde diz Marmelete, acalquem em 'origem') e lá foram caminho da ermida, sempre naquele andamento deles ô som da música. E tudo correu do melhor que foi uma festa.

Até o senhor Prior 'tava de tã boa avêa qu' inda nunca o tinha visto assim. Ô fim de tudo, inda lá na ermida, disse uns d'chotes que fez f'car tudo às carcachadas. Coisas bem caçadas, nã cudem... Olhem a últ'ma foi, más ó menes, assim:

- E agora, mês amigues, toca a ir tudo s' ad'vertir, comprar uns b'lhetinhes na quermesse, sentarem-se além de baxo da esplanada e charolar uns com os ôtres até que venha a m'lher da fava rica...

'Tá bom de ver qu' o senhor Prior nã é cá. Vêo de fora. Que s' ele fosse de cá, em vez de falar na m'lher da fava rica, falava, calhando, no Zé Luís das alcagóitas ó nôtra figura assim mái cá das nossas bandas. Aí um bicho-careto qualquer.

O caso é que tôdes alcançaram muntíssimo de bem o qu' ele qu'ria d'zer e se bem o entenderam melhor o fazeram, qu' a festa foi rija e durô até às tantas...

E inda me dêxô tirar retrates lá drento e tudo.

- Tôdes os qu' o mê amigo qu'ser, à su' vontade!... - Disse-me ele, q'ondo l'e pedi l'cença.

Dés l'e pague senhor Prior.

Andor de S. António

O andor de Sant' Antóino 'tava méme bem enfêtadinho.

E assim acabô a parte da precissão, qu' a do ad'vert'mento ê logo l'es conta a seguir. Agora tenho qu' ir regar um fêjão de baja que tenho p' ali, senã, com uns calores destes, aquilo marafa-se-me tudo inda se fica sem nada que preste. E a minha Maria aprecêa munto fazer tanto umas bajinhas com batatas c'm' uma sopa qu' ela sabe fzer qu' é uma classe.

Isto p'a já nã falar dos pexinhes da horta qu' ela usa fazer q'ondo se vai assim a qualquer banda e calha-se a levar uma morenda p'a c'mer lá.

Atã, Dés l'e dê saúde.

14 julho 2006

Igreja de S. Sebastião: O Mártir Sagrado

Igreja de S. Sebastião

A Igreja de S. Sebastão. Tamém l'e chamam do Márt'e Sagrado.

Esta ingreja é pequenalha e pode nã ser munto vistosa, mái pertence a S. Sebastião, um santo que munta famila gosta ô bem fêto, cá na nossa terra. Até l'e chamam o "Márt'e Sagrado", p'r mode os romanos o atarem a um tróço d' arve e l' atravessarem o corpo todo de setas.

'Tá um coisinho fora de volta e, calhando, inda há p'r cá quem nã na tenha visto. Isto p'a nã falar dos que vêem d' ot'as bandas e nem tampôco sabem o caminho p'a lá chigar.

Mái uma coisa l'es dig' ê cá. Drento desta ingreja, 'tá gôrdada uma imagem de Nossa Senhora do Desterro qu' é uma coisa de estimação. Já foi fêta vai p'a trazentos e muntes anes, des que foi no séc'lo XVII, e ad'vinhem lá d' adonde é qu' ela vêo?...

M't'ôbrigado, vomecêas acertaram tôdes, logo à pr'mêra, p'r ca'sa do nome... E é verdade. Trazeram-na do Convento. Qu' o Convento tamém se chama de Nossa Senhora do Desterro e, olhando bem, até se vê no ali retrato, na chapada da banda de lá.

Com tantas ingrejas qu' há na Vila, mecêas hõ-de prèguntar que jête ê falar, hoje, nesta. Mái a rezão é só esta:

Q'ondo ê 'tava a tirar os retratos, apròchêga-se de mim o ti Zé Caçapo, o tal qu' a gente usa a l'e ch'mar "Verruma". Ora, ê cá 'tava tã emprensado a apontar a mánica que nem dí p'r ele.

Nisto, oiço uma fala, assim baxinho e, béque-me, ô longe, qu' ele tinha posto a mã em par da boca e voltado a fúiça p' ô lado, p'a d'sfarçar, qu' ê, logo, nã precebi quem era:

- Olha, 'tá aqui um "tôirista" a tirar retrates à ingreja do Márt'e Sagrado... D' adonde é qu' ele sará. Sará englês ó sará da Moita?...

Punhana mundo!... Subi-me logo aqui o sãingue às ventas... Atã, um badalo qualquer a me ch'mar aqueles nomes, assim sem más esta nem más aquela?!... Ora "tôirista" da "Moita"... Vê-me logo à idéa aqueles bichos pretos que têm duas coisas espetadas na cabeça e vã p' às toiradas...

Com a rabeada que me deu, volt'-me de rompante, dô de caras com o Verruma, já o marafado ria às carcachadas. Aquilo nã me passô logo, inda l'e falí de rijo:

- O qu' é que foi, sê mariola?!... Atã isso chama-se assim nomes a qualquer um, sem más nem quem?!... Tenha lá tento nessa língua!...

Atã é qu' o raio do velho se ria... Foi q'ondo vi bem qu' era ele.

- Ai é vomecêa, ti Zé? Olha que esta!... Já m' ia fazendo enzainar...

- Nã te marafes, Refóias, qu' ê 'tava só a mangar contigo... Atã andas a tirar retrates ô quem? Nã me digas qu' agora dêxaste o tê serviço e deste nisto... Já sê adonde ir q'ondo ter precisão de tirar o retrate p' à carta de caçador, qu' acaba agora no fim do ano...

- Se vomecêa nã t'vesse idade p'a ser mê pai, ê logo l'e dava uma répla ô consoante... Mái, inda tenho um coisinho de vergonha na cara, nã sô c'm' vomecêa que diz todas as parvidades que l'e vêem à cabeça...

- Olha, dêxa-te lá de coisas e anda más é daí com-migo, qu' ê já passí ali p' o cemitéiro e agora vô-me àlém à praça do pêxe ver se compro umas sard'nhitas p'a assar, mái-logo. Se fosses homem p'ra isso, fazia-se uma assada os dôs, comprava-se um garrafanito de vinho e entretinhames-se um pôcachinho, qu' isto 'tá munto calor p'a se fazer alguma coisa fora de casa.

Aqui, vi logo adond' é qu' ele qu'ria chigar...

- Tamém 'tá bem. Atão, um compra o pêxe, o ôtre compr' ô vinho e a minha Maria faz lá a assada p' à gente. Com uma bela selada de tomates e popines, qu' ê já tenhe d' acolhêta. Só se tem de comprar tamém um p'mento ó dôs, qu' isso inda nã tenho.

E assim fazemos.

Igreja de S. Sebastião

A Igreja de S. Sebastão inda tem o sino. Vamos a ver se nã no rôbam c'm' fazeram nôt'as bandas...

Nesse mê tempo que se foi ô pêxe, o ti Zé Caçapo nã se calô p'r tempo nenhum. Até que me desata a contar uma parte qu' ele diz que se cá na Vila com o Márt'e Sagrado. Ê cá nã sê se se dé se nã se deu. Béque-me quer par'cer mái p' ô não que p' ô sim.

'Tô em ferros p'a l'es contar, mái sinto-me assim um coisinho embatucado qu' ê nã quero ofender nem o santinho, nem o padre dessa altura e, inda menes, a famila, c'm' à minha Maria, que se pelam p'r o S. Sabastião.

Olhem, sem ofensa e só p'r graça, aqui vai, tal e qual com-m' ele ma contô:

- Nôtres tempes, ajuntava-se semp'e um poder de famila p'a levar o andor do Márt'e Sagrado p' à Ingreja Matriz, mái, désna d' há uns anes p'a cá, tem sido uns trabalhos p'a arrenjar homens que cheguem p'a pegar no andor.

- Ah, sim, ti Zé? Atã e c'm' é que se têm desenrascado?

- Olha, parte das vezes, só têm par'cido quatro, méme à justa, p'a pegar cada um no sê lado...

- Atã, assim, têm que ser os mesmos a levá-lo désna da ingreja dele até à Matriz...

- Nem mái nem menes. Alguns, sã homens duma certa idade, pobrezinhos, chegam lá tôdes derrengados... E tu, Refóias, em Janêro, em chigando o dia, bem podias dar uma ajuda, que bom corpo tens...

Aqui, calí-me sem saber o qu' havera de d'zer. E ele voltô ô assunto:

- Mái, o pior foi aqui um destes anos atrás... Chigô-se ô dia de levar o santinho e nã par'ceu ninguém. Nã sê se foi o padre que nã apregoô na missa a tempo e horas, s' o qu' é que foi, ó s' é a famila que já nã 'tá p'a se mort'ficar p'r coisíssema nenhuma, o certo o certo é que nã havia quem levasse o santinho.

- Atã e daí, o qu' é que fazeram?

- Olha, nã sê te conte se não. O que me d'zeram até me custa a engolir, sê cá se taria sido assim ó não...

- Ó homem, conte à vontade... Ist' é uma conversa só p' à gente os dôs...

- Pôs atão, des qu' o bom do padre esperô p' à nôte, prantô com o santo drento duma gòrpelha, pôse-a im cimba burro e, no dia a seguir, q'ondo o pessoal chigô à missa, já lá 'tava o Márt'e Sagrado na Ingreja Matriz com o andor todo bem enfêtado e pronto p' à famila ir lá rezar e se consolar do ver.

- Bençoado!... Desenrascô-se bem. Quem saria esse padre?

- Refóias, diz-se o milagre mái nã s' alomea o santo...

- Ó t' Zé, tem toda a rezão. Agora falô bem, sa senhora.

- O pior foi o falatóiro que p'r 'í andô. Qu' isto há semp'e quem 'teja pronto p'a d'zer das suas, tenha rezão ó nã tenha. E, d'zendo a verdade, o santinho semp'e ia melhor se fosse numa via com condiçõs... Que foi o que, béque-me, já fazeram daí p'ra cá. Trazeram-no, munto bem embrulhado, num à't'móvel e pronto.

- Olhe, cá p'ra mim, tanto vai bem duma manêra c'm' dôtra. E quem nã gostar qu' o vá lá ajudar a trazer... Tamém Jesus chigô amontado num burro a Jerusalém, no D'mingo de Ramos, e tôdes l'e bateram palmas...

- Lá isso é verdade. Mái os tempes tamém eram ôtres...

E com isto se foi passando o tempo. A minha Maria fez uma sardinhada que foi um encanto. Enché-se tôdes a barriga em forte e quái que se desgotô o garrafanito, com a ajuda de mái dôs amigues qu' apar'ceram com o belo chêro qu' as sardinhas dêtavam...

E vô-me f'car p'r qui, que mecêas jã nã m' hõ-de dar aturado.

Haja saúde da boa e até um dia destes.