22 maio 2006

Recantos da Vila: A Travessa das Guerrêras

A Travessa das Guerrêras parêce uma estufa de flores

Quái sempre, tem-se as coisas na frente e nã se as vê. E dig' isto p'rqu' a minha Maria, marafada, tôd's dias, andava a matinar com-migo:

- Ê cá g'stava d' ir à Travessa das Guerrêras. Des qu' aquilo 'tá tã bonito... Ali a prima Jôqu'nita já foi lá um dia destes, despôs da missa, e g'stô munto. A gente havera d' ir tamém. Ó home, vai lá com-migo à Travessa das Guerrêras. Custa-te assim tanto?...

E ê fazia que nã ôvia. Logo, p'rque nã sabia com-m' àquilo 'tava e, despôs, p'rqu' a gente nã l'e pode fazer vontade log' à pr'mêra, senã elas tornam-se soberbas... Más ela, inda bem não, punha-se ôtra vez com aquela cantilena. E ê calado.

Até que foi, foi, lá terminí qu' uma tardinha destas ia-se lá. Ora, nã l'e fosse ê d'zer otra coisa, ela quis ir logo no mémo dia. Ê, tamém, p'a nã me apequentar, fui e pronto.

Atão e nã é qu' ela tinha r'zão?!... Até f'quí parvo. Raça!.. Aquilo 'tá lá uma coisa tã bem trabalhada que nã se pode d'zer que se dá o tempo p'r mal empregue... E nã cudem qu' ê dig' isto p'r d'zer, qu' ê atão nunca tive jêto p'a pastelêro. O que tenho p'a d'zer digo logo.

Inda nã se tinha chigado lá - 'tava-se p'aí a mê da Rua do Porto Fundo - lombrigo logo a prima Jôqu'nita à rua abaxo toda munto a olhar p'a um lado e ôtro, fazendo que nã via a gente. Aquilo foi um foguete, 'tava-se ô pé dela.

- Atã, primos, o que fazem aqui p'r estas bandas?...

Diz logo ela munto l'gêra, fazend'-se de novas, com-m' s' ê cá nã sabesse qu' a minha Maria l'e tinha contado qu' a gente ia lá...

- A gente viemos s' assomar aqui à Travessa das Guerrêras... atã e mecêa?

- Eh'q, vinhe ali à farmácia de cima ver s' eles já tinham aviado uma recêta qu' ê dêxí ali esta manhã, mái 'tá p' ali um reméd'o que nã há. Des que só lá p' amanhã ó despôs é qu' há-de chigar.

Diz logo a minha Maria:

- Atã venha daí com a gente, prima. Sempre paleamos as duas um coisinho e, despôs, volta-se todos p'a baxo.

- Béque-me nã me dava munto jêto agora, tenho p' além umas coisinhas p'a fazer...

Responde-l'e a prima Jôqu'nita, e, ô méme tempo, dá logo uns passinhos d'rêto à Travessa das Guerrêras. Ora nã l'e dava jêto ir. Ela vêo ali d' a pr'pósito...

E lá se foi andando ali prê acima. 'Tá claro qu' elas a s duas c'meçaram a tramelar, nunca mái se calaram. Ê sê cá s' elas chigaram a ver alguma coisa daquilo?!...

Mái, falando verdade, gostí do que vi. Tudo munto bem arrenjadinho, as flores bem tratadinhas, até as pedras do v'lado 'tã pintadas. Quem fez aquilo merêce bem uma gabadela. Nã sê, ô certo, quem foi, mái d'zeram-me que sã méme os que moram lá que fazeram e ôlham p'r aquilo. Pôs que seja com munta saúde e bençoados p'r serem assim tã crusidôsos.

Ia ê cá a devassar aquilo tudo munto bem, pensí:

- S' os estrangêros sabessem disto, apreciando eles com-m' aprecêam coisas destas, havera de ser aqui um correpio deles, tôd' ô dia...

E vá d' olhar p'ra cimba, qu' aquilo até dava gosto de ver aquelas flores tã bem aconch'gadinhas. E o chêrinho qu' aquilo dêtavam... Já nã falando da fresquidão, qu' aquilo 'tava um dia de sol, e bem quente, e ali era uma sombra qu' igual só no Barranco dos Pisõs, debaxo do plátano a ôvir a água a correr...

Nisto, dô mái um passo p'ra cima semp'e olhando p' às flores, béque-me sentí uma coisa ô pé de mim. Olho de repente, até f'quí ensampado... Logo, só vi assim um bescoço, mái a seguir, alevantí um coisinho a cabeça, dô com a cara duma estrangêra, qu' até me passô assim uma coisa cá p'r dentro.

A m'lher tinha bem um palmo a más que eu, cabelos amarelos, só trazia uma blusalha e uns calçanitos im cimba daquele corpo e vá de rir p'a mim. Punhana!... Até f'quí de boca aberta, todo arrepiado e d' olhs arregalados sem saber o qu ' havera de fazer...

Salta a minha Maria, que já ia más à frente a tramelar com a prima, mái repáirô logo no que se 'tava ali a dar:

- Atã, ficas aí tôd' ô dia ó quem?!... Em lugar de vires aqui conversando com a gente, vens 'í atrás sòzinho, parêce que 'tás zangado...

Ora, munto qu'riam elas qu' ê fosse lá ô pé... Ela f'cô logo foi ciosa d' ê ter ôlhado p' à estrangêra. Mái atão, só s' uma pessoa fechasse os olhos. E uma coisa daquelas nã parêce tôd's dias...

Mái tamém, atrás dela lombriguí logo um estapôr, grandalhão que fazia quái dôs de mim, d' alprecatas e óculos de pó, com a pele toda encarniçada do sol, dôs braçalhõs que nem um macaco qu' ê vi, uma ocasião, lá no jardim zológico de Lisboa q'ondo fui a Fátima numa excursão. Pensí:

- Põe-te más é a mexêr daqui, senã dás-te mal p'r dôs lados. É a tu Maria e é este trambôlho com cara de pôcos amigos...

E lá d'sfarçí a coisa e fui andando prê acima. Aí, elas já nã esperaram p'r mim nem nada. Puseram-se no mémo faladoiro que vinham e já nã emportaram qu' ê f'casse p'a trás.

Mái, inda o que me valeu foi que, chigando ô canto de cima, 'tá lá uma venda. Venda dig' ê cá, qu' eles agora alomeam aquilo p'r bar. E, p'r sorte, aquilo tem umas mesas cá na rua, a dar assim p' às flores, e quem havera de 'tar lá assentado?... Nem mái nem men's qu' o Zé Manel, o filho do mê compad'e Jôquim do Barranco.

'Tava ele, a Cilinha - o marafado já a atracô... - e mái um moço e uma moça amigos dele. Ora, tudo lá se comprimentô, c'm' é que vão c'm'é nã vão, o que se fazem o que nã se fazem, e as m'lheres foram andando prê cima, semp'e na méma conversa.

Ê cá f'quí mái um coisinho, nã foi p'r nada, mái 'tava-me a luzir o olho p'r um calcezinho de quasequer coisa... Até qu' o Zé Manel lá se resolveu:

- Ó ti Refóias, se l' a petêce, assente-se aqui um coisinho ô pé da gente e beba-l'e aí um porrete...

- Eh'q, tenho quái vergonha póss'-me tornar rançoso, mái se nã s' emportam...

- Que jêto uma coisa dessas?!... Nã diga isso, parente. Assente-se já aqui qu' ê vô enc'mendar uma bebida p'ra si.

E o Zé Manel, tã penas disse isto, levanta-se e vai lá p'a drento.

Ê f'quí-me e nã disse nada, mái pensí logo qu' aquilo nã ia sair dali boa coisa, qu' isto idéas do Zé Manel hô-de dar semp'e em gozo. Nã sê a quem é qu' ele sai assim, mái, désna que foi trabalhar lá p' a baxo p' ô Algarve, dé' cá num gozão...

Nã se passô tempo nenhum, já ele lá vinha com um copo na mão, daqueles munto compridos, com uma bobida lá drento. Vá lá qu' o copo nã 'tava chêo, q'ondo munto, 'taria p' aí uma terça parte e o resto era tudo pedaços de gelo...

- O qu' é que me trazeste p' aqui, Zé Manel? Olha qu' ê nã 'tô ac'st'mado a estas bobidas... Vê lá bem o que fazeste...

- Beba, qu' isso bom, parente. Nã tenha medo qu' a gente tamém 'tá a b'ber do mémo. Até a Cilinha gosta...

E p'scô o olho p' ô ôtro moço que 'tava lá e fez assim um miéco à cara qu' os ôtr's deram tôd's uma carcachadinha.

Pensí:

- Já 'tô charingado com eles. Andam, andam, querem-me empurrar p'a qui com alguma pelhêga qu' ê cust'-me a alevantar daqui... E, más a más, qu' ê nã 'tenho c'stume de bober coisas assim tã frias, inda panho alguma const'pação.

Más eles brigaram tanto com-migo, qu' ê lá me resolvi, pus o copo à boca e vá, bebe-l'e aquilo tudo duma assentada. P'a ser franco, até que nã me sôbe munto mal. Um coisinho frio de más, mái beh!...

Fartaram-se tôd's de rir... Béque-me foi p'r ê cá b'ber aquilo tudo duma vez. Más é c'm' à gente usa fazer aqui q'ondo se bebe um calcesinho dela... Atã aquilo tem algum jêto 'tar ali só a molhar os bêços que nem uma galinha a b'ber?!...

O Zé Manel, alevanta-se, pega no copo e abala ôtra vez lá p' ôs lados do balcão. Ê pensí qu' ele ia pôr lá o copo nã fosse ele cair ô chão e se partir p' ali. Qual o quem, volta com ele inda com más do que da p'rmêra vez...

- Vá, 'tá aqui ôtro que mecêa chigô atrasado e a gente já se tinha b'bido ôt'a rodada... Beba à confiança qu' isso só leva aí um coisinho de vodka e o resto é laranjada.

- Zé Manel, vê lá o qu' é m' arrenjas p' aqui... Ê sê cá o qu' é vodka?!...

Dig'-l' ê cá, inda mái desconfiado e já a sentir uns calores a me subirem à cabeça.

- E inda se faz uma coisa. - Responde ele - Agora, bebe-se tôd's ô méme tempo e duma golada só com-me vomecêa fez, inda agora. Vá, malta. Às nossas saúdes...

Pegaram tôd's nos cop's, olharam p'ra mim, ê tamém peguí no meu. Sem más esta nem más aquela, enfiaram aquilo p'las goélas abaxo, ê vi-me obrigado a fazer o mémo. E o que l'es sê d'zer é qu' aquela bodega até já me sôbe melhor...

Neste entrementes, as m'lheres, que tinha ido p'ra cima, estranharam ê nã par'cer, vieram-se assomar à quina da rua. Foi a minha sorte. Apr'vêtí logo p'a me safar...

- Zé Manel, tenham pacência qu' ê, ôtro dia, logo pago tamém uma rodadinha. Agora 'tão àlém as m'lheres empatadas p'r mim, tenho qu' ir andando.

- Ó ti Refóias, nã faça isso, dêxe-se 'tar mái um coisinho qu' a gente hoje é que paga tudo. Diga p'a elas virem tamém.

O qu' ele qu'ria sê ê munto bem. Ê já 'tava a sentir a cabeça a andar à roda... E tamém vi a cara qu' a minha Maria fez q'ondo m' alevanto e, em lugar d' ir p'ra cima p' ô lado delas, dô logo dôs passos prê abaxo... Mái uma galhofa p' àqueles judeus...

Mái, lá tomí rumo e tornejí p'ra cima. Méme a custo, cheguí ô pé delas sem ganguear mái vez nenhuma e dí logo ordes p'a se voltar p'a casa.

- Maria, tem's qu' ir já p'a casa qu' inda se tem lá o g'verno tôd' p'r fazer e isto já passa de mêa tarde.

- Atã, des que s' ia tamém ali às Escadinhas do Adro...

- Olha fica p' à semana.

Ê 'tava-me era de'jando de safar dali que, cada vez, me sentia mái enzamboado... E olhem qu' as Escadinhas do Adro tamém 'tão bem bonitas. Tã penas tenha jêto, logo l'es falo nelas.

Munta saúde p'a vomecêas e passem munto bem.

2 comentários:

  1. Oh compadre Refóias munto eu gosti do seu passeo pela Travessa das Guerreras , fez-me lembrar o tempo em que eu era moça pequena (e já lá vão mutos anos ) e aquele bar todo moderno onde os moços novos vão-se enfrascar ao fim de semana . Continue com os seus passeos dos quais sou leitora assidua.Passe bem e até ouro dia.

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  2. hehehe passei muitos bons momentos nesse bar em que cheguei a ir todos os dias. Por acaso já levei lá os meus pais e tios mas nunca lhes preguei tamanhas partidas.

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Obrigado por visitar e comentar "O Parente da Refóias"